quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

"Fair and lovely" - como a tonalidade da pele determina a vida social na Índia




Acredite, esse anúncio é real.

Assim como fazemos também em terras tupiniquins, na Índia se valoriza mais o que é estrangeiro. Até aí, nada de novo. Acho até que os Indianos conseguem  manter sua própria cultura bastante viva, bem mais do que fazemos no Brasil. E olha que a Independência deles é bem mais recente que a nossa. No entanto, um traço dessa super-valorização é bastante marcante: a cor da pele. O Brasil é um país de muitas cores. Ninguém é realmente branco ou realmente negro, somos uma mistura de muitos povos. Não podemos dizer o mesmo da Índia. Os Indianos possuem uma cor única que vai variando em tonalidades. O Indiano é cor de canela. E essa cor, somada aos olhos grandes e aredondados, sombrancelha grossa e cabelos negros fazem do Indiano reconhecível em qualquer lugar do mundo. Porém, mesmo sendo donos de uma beleza única, são inconformados com a cor que possuem. De pouquinho em pouquinho, fui entendendo como funciona a associação de poder e beleza à o quão alvo se é e a cada dia só ficava mais chocada. Narro algumas situações abaixo.

Situação 1: "Eu quero a sua pele!"

Apaixonei-me por mehendi desde que cheguei aqui. A tatuagem de henna com motivos árabes me dá a possibilidade de ter as mãos e os pés decorados com um novo design a cada quinze dias. Tentando aprender a aplicar mehendi e me usando de cobaia, as professoras da escola sempre esperam ver um desenho diferente em mim. Em uma segunda-feira, cheguei à escola toda empolgada com o novo modelo. Uma das professoras sentou ao meu lado para analisar o modelo.
Professora: Você está ficando cada dia melhor em mehendi.
Eu: Obrigada! Estou praticando bastante.
Professora: E fica linda na sua pele. Aliás, qualquer coisa fica bonita na sua pele, qualquer desenho, qualquer cor de roupa.
Eu: Não é verdade. Eu fico bem estranha de laranja.
Professora: Não, não fica. A pele branca fica bonita com qualquer coisa. Não é como a minha pele, escura.
Eu: A cor da sua pele é linda, do que você está falando?
Professora: Minha pele é feia. Sua pele é bonita. Eu queria ter a sua pele.
Senti minha pele sendo arrancada dos meus músculos.

Situação 2: O anúncio matrimonial

O casamento é uma fase obrigatória da vida na Índia. Homem ou mulher, todos se casam antes dos 30 anos, às vezes até bem antes. Casar não tem exatamente uma relação direta com amor, segundo eles, o amor vem depois. Os casais são unidos por condições financeiras das duas famílias, castas, análises astrológicas, religião e aprovação dos pais. Por isso, é muito comum que se procure um noivo ou noiva através de anúncios no jornal ou agências matrimoniais. Um dia, resolvi dar uma olhada no que se escreve nesses anúncios. Em todos os anúncios, as mulheres se descreviam como "fair" ou, de pele clara.


Situação 3: "O que aconteceu com seu rosto?"

Após um ano ir à praia, resolvemos ir à Goa, o único estado em que é possível ir à praia de biquini. Montamos a operação bronzeado e, em uma semana, parecia menos com um cadáver e mais como uma Brasileira saudável. Volto do feriado achando as reações na escola seriam as melhores. Assim que encontro com a primeira professora, ela olha assustada para mim e me pergunta o que havia acontecido com meu rosto. Eu respondo que havia me bronzeado ao sol. Ela, sem entender nada, me pergunta por quê eu havia feito uma coisa dessas com minha pele. Para parecer mais saudável, respondo. A professora fica boquiaberta. Eu deveria ter imaginado que um lugar no qual uma seção inteira do supermercado é dedicada a produtos para clarear a pele não acharia graça alguma nas minhas marquinhas de biquini.
É possível achar esse creme em praticamente qualquer lugar. Na vendinha de frutas em frente à minha casa não falta. 


Ter a pele escura é um grande problema. Para casar, para conseguir emprego, para ser aceito socialmente. Preconceito não é novidade, no Brasil amargamos um racismo terrível, mas, diferente de Brasil, no qual se associa a pele negra à pobreza e/ou a violência, aqui na Índia pouco importa se você é rico ou pobre, ter a pele escura é uma desgraça. Produtos para clarear a pele de homens e mulheres estão disponíveis até nas vendinhas mais informais e são amplamente usados. Não são protetores solares, me entendam, são clareadores que prometem (e cumprem) modificarem a tonalidade da pele mediante uso contínuo. Nas cidades grandes, as mulheres chegam ao ponto de amarrem um lenço ao rosto para não se queimarem ao sol (e também para se protegerem da poluição). A propaganda do supermercado o qual frequento mostra uma família branca, embora os únicos dois clientes brancos sejam eu e o Val.

Para homens ou mulheres, a exigência é a mesma.

Não poderia deixar de fora os recentes acontecimentos na escola em que trabalho. Além de fazermos nosso trabalho como professores, constantemente somos obrigados a participarmos de campanhas publicitárias. A última foi uma filmagem cinematográfica acompanhada de uma sessão de fotos. Até aí se entende, toda escola, infelizmente, é um comércio, mas o que me chocou foi que as crianças escolhidas para participarem de fotos individuais eram as mais claras da escola. E os professores, de um quadro de 17 professores, apenas eu, Val, Pamela, de Camarões e a secretária que, para quem não conhece e assiste o vídeo, acha que é uma das professoras da escola. No produto final, o foco é constante em mim e na secretária. O fato de que nenhum professor indiano foi escolhido para participar da filmagem (com exceção de uma professora do Jardim II, bastante alva, por sinal), enfureceu alguns professores, mas, mesmo mediante carta de repúdio, a administração da escola não voltou atrás - Disseram que estrangeiro vende e, pra piorar a situação, ele está certo.

Dos preconceitos que ví por aí, talvez esse daqui seja o mais bizarro. Ninguém é branco, mas todo mundo quer ser branco. É necessário se esforçar para mudar a tonalidade da pele para se conseguir "respeito" social. Antes que se diga que há de culpar os anos de exploração Inglesa, os livros clássicos do Hinduísmo fazem referências à beleza ou feiura com associação constante à tonalidade da pele. Infelizmente, o "ser branco é melhor" está mais e há mais tempo enraizado na cultura do que se imagina.

De moça escura infeliz para moça clara e bem sucedida.











quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sobre como descobri a Yoga e a mim mesma



Há muito mistério em torno da Yoga. Talvez por sermos ocidentais, nos é difícil entender uma filosofia que veio de tão longe, literalmente do outro lado do mundo. Vemos praticantes de Yoga se desdobrando como origamis, associamos ao Hinduísmo ( ou à idéia abstrata que temos do mesmo), achamos caro, inacessível...achamos que não somos flexíveis o suficiente para nos arriscarmos em uma aula de Yoga. E assim, mistério por cima de mistério, mito após mito, a Yoga vai se tornando algo impossível. Não que não haja Yoga no Brasil. Mesmo em Fortaleza, não são poucas as escolas e associações de Yoga, mas as academias de musculação ainda são mais lotadas do que a mais badalada das escolas. A razão é simples: a academia dá resultados imediatos, músculos saltados em meses, enquanto a Yoga ensina a arte da paciência. E por mais que seja logo a paciência que mais precisemos nas nossas tão corridas vidas, parar para cultivá-la é um sacrifício o qual nem sempre estamos dispostos a abraçar. Além disso, acredito que a aura de mistério ao redor da teoria e da prática da Yoga é talvez o que atraia boa parte de seus novos praticantes. "Comecei a fazer Yoga" é uma frase que inicia conversas, dá ao falante um tom alternativo, espiritualizado, descolado.

Comecei a praticar Yoga alguns dias após chegar à India. Logo na primeira aula, toda a idéia de Yoga que eu tinha foi ao chão. Não era algo impossível, não quebrei nenhum osso, não precisei de roupas especiais. Apenas uma informação anterior fez todo sentido: senti-me tão relaxada, tão leve, tão em paz que só uma decisão parecia certa em minha mente - a Yoga nunca mais deveria sair da minha vida. Enfim havia achado uma forma de cuidar do meu corpo e da minha mente sem querer desistir nos primeiros dez minutos. Explico. Nunca fui uma pessoa fisicamente ativa, confesso. Não pratiquei esportes da escola (além de algumas mal-sucedidas partidas de vôlei), sempre me matriculava na musculação e acabava desistindo no segundo ou terceiro mês. Sempre tentei, mas me sentia patética andando sem sair do lugar em esteiras, em bicicletas estáticas, levantando pesos em sequências, sentindo dor, suando, torcendo para que as horas naquele lugar repleto de corpos de músculos saltados passassem rápido. Na academia, a chuveirada era sempre meu momento favorito. Mas logo na minha primeira aula de Yoga, percebi que, por mais que claramente estivesse trabalhando com meu corpo, havia algo mais, algo de atraente. Por mais que uma postura exigisse bastante dos meus músculos, era minha respiração e minha concentração que determinariam meu sucesso. Exercitar a respiração foi, também, algo novo para mim. Respirar é involuntário, mas na Yoga a respiração é uma atividade voluntária e controlada e que rege a aula inteira.  Impressionou-me deitar em savasana. Após muitas posturas e exercícios, a instrutora pediu que nos deitássemos e relaxassemos, diminuindo o ritmo da respiração, evitando pensamentos, relaxando músculos, órgãos e mente. Descansar em uma academia significa sentar-se ofegante em qualquer aparelho por no máximo cinco minutos e sob o olhar suspeito do instrutor. Na minha primeira aula de Yoga com minha adorada guru Aradhna, não olhei para ninguém, não percebi roupas, não me importei com marcas, não me preocupei se alguém olhava para minha bunda, todas as preocupações que povoavam minha mente em uma academia de musculação. 

Na aula de Yoga, cada um é um universo, cada um vai até onde consegue, cada um é um ser único e o instrutor observa cada praticante, observando evoluções, evitando lesões e orientando mais com o silêncio do que com palavras. E, ao mesmo tempo, o grupo é um só. Entoamos o OM juntos, no mesmo tom em uma respiração coletiva. Respeita-se o silêncio, cultua-se o olho fechado, a boca calada, a concentração. Com o passar dos dias, percebia que às vezes era apenas na aula de Yoga que eu me calava e estava comigo mesmo. 

Após 7 meses de prática, vendo nossa empolgação e dedicação, a instrutora nos sugeriu um curso de formação de professores na mesma escola em que ela havia se formado. Foram muitos fins de semana de acordar cedo, memorizar nomes em sânscrito, escavucar memórias de aulas de biologia as quais jamais achei que ainda existissem em mim. Aos poucos, fomos entendendo o porquê de cada postura, de cada exercício de respiração e, mais que isso, entendemos que posturas e exercícios são uma parte minúscula da Yoga, uma filosofia milenar, muito mais um estilo de vida do que uma prática física. Mudamos hábitos, cortamos vícios e vimos nossa rotina sendo modificada por ensinamentos milenares. Nos formamos professores de Yoga com uma certeza: mal havíamos começado a trilhar os caminhos da Yoga e muitos livros, práticas e reflexões ainda estavam por vir. O fato de haver mais a aprender do que a ensinar motiva mais do que desestimula.

A Yoga é uma prática individual, antes de tudo. Ensiná-la é compartilhar as próprias conclusões entendendo que se está diante de um outro indivíduo, com outras necessidades e desejos e que deve achar seu próprio caminho. É conhecer-se, entender-se como parte inevitável da natureza e não como controlador e dominador dela. Talvez seja esse o maior mistério da Yoga a ser desvendado:  mistério de si mesmo.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Mango Lazy Sound Machine (Arambol, Goa, Índia)


A voz rouca, segura, constante foi ouvida de longe. Ao me aproximar, fui percebendo o sax, os trompetes e os múltiplos recursos de percursão que enfeitavam o som como faz a pimenta aos pratos indianos - às vezes quase imperceptível, mas notoriamente essencial. Cantava-se em Espanhol, Inglês, Francês, cantava-se em línguas. A banda, formada de cabeludos barbudos sem camisa e nem muita carne atrelada aos ossos era comandada pela voz rouca de saia esvoaçante, cabelo bagunçado com eventuais dreadlocks, tererês e corpo bronzeado, corpo esse que era extensão de sua voz. Ela é bailarina da areia, músculos, panos e mãos comandados pelo som inquieto dos trompetes. E por falar em inquietos, inquietos eram os corpos, bocas e mentes que participavam da viciante harmonia. Quem estava sentado, se sacodia. Quem estava em pé, se entregava ao transe.

Um intervalo e a sensação de estar em outra década. E o som, que deveria recomeçar do palco, surge da beira do mar, agora com uma tuba, um acordeon e um percursionista cujo instrumento eram duas baquetas e uma perna plástica de um manequim. A banda que antes tocava agora se junta à banda que chegou, misturando instrumentos, ritmos, e, após um tempo em roda, passando pelos ouvintes dançantes, juntam-se todos no palco e uma nova festa começa. 

A cantora exibe-se com uma bola de contato e mais tarde com malabares. A banda lhe prepara o fundo musical perfeito. Finalizam instigando todos à dança e eu me entrego de braços e quadris, guiada pelo namorado numa salsa/lambada/forró, o suor escorrendo da testa ao pescoço. 

Passam o chapéu e, extasiados, pagamos com dinheiro a música que nos levou a anos que jamais vivemos.