Quatro meses na Índia. Como o tempo passa rápido! Talvez tenha chegado a hora de fazer o balanço desse tempo por aqui. O intercâmbio acaba em Abril, mas ainda não sabemos bem o que vamos fazer. Só sabemos que não vamos parar de viajar. Os planos consideram possíveis olhos apertados ou salsa. São apenas planos, mas com o passar do tempo, tornam-se cada vez mais urgentes e cada vez mais urgente é a necessidade de conhecer o que der daqui. São apenas três meses a mais e três meses passam muito rápido.
Após quatro meses, a Índia mostra suas verdadeiras cores. Para quem chegou sem saber quase nada, cheia de receios, mitos, medos e um milhão de expectativas, até que ando aprendendo bastante por aqui. Vou buscar falar sobre cada um desses aspectos, com reflexões sobre esses quatro meses, em vários posts, assim me forço a escrever por aqui e me aprofundo em cada um dos assuntos.
A culinária, os temperos e a tolerância
A comida da Índia não é apimentada – ela é saborosa. É uma culinária de muitos temperos, muitas técnicas. Aparentemente, pode parecer rústico demais cozinhar com as mãos, mas sentir os ingredientes da receita, buscar aromas, tentar reconhecê-los, tentar utilizá-los da maneira certa é absolutamente fantástico. Vou comprando os temperos de pouquinho sempre que provo uma receita nova, utilizando progressivamente cada uma das inúmeras massalas. Quero voltar ao Brasil tendo uma boa noção da culinária indiana. Para isso, viajar para outros estados foi essencial. Ler livros de culinária e ver vídeos no You Tube também.
As regiões da Índia possuem diferentes hábitos em relação a alimentação. Algumas regiões indianas possuem pratos ou menos apimentados, como o Biryane de Hyderabad, apimentado demais até para os próprios indianos. Comendo a comida da escola todos os dias, nos habituamos aos nomes, aos sabores, ao que é suportável e o que é insuportável. A cada dia, conhecemos um novo item de café-da-manhã que não nos faz sentido e, provando novamente, ele parece ser um pouco mais coerente, como o Idli, uma massa branca parecida com aquelas tapiocas redondas feitas na chapa, mas completamente sem gosto. É necessário aprender que se for quebrado no molho com o qual ele é oferecido, o Idli pode ser delicioso. A refeição inteira é saborosa, desde o dal (molho de lentinhas) que se coloca sobre o arroz, até a refeição principal, passando pela chapatti, sem esquecer da sobremesa.
Sim, a comida do Brasil também é extremamente saborosa, não me entendam mal, mas como esse é o país das especiarias, uma refeição tem até 10 vezes mais temperos variados em relação à comida Brasileira. Pimenta preta, branca, malagueta, dedo de moça, cominho, orégano, cheiro verde, cebolinha, alho, cebola, óleo de dendê,pimentão, pimenta de cheiro, tomate, óleo de oliva e manjericão são praticamente tudo o que usamos em na nossa culinária mas aqui a oferta de condimentos é tão grande que os temperos são raramente vendidos separadamente e sim em misturas, as massalas. É um festival de sabores – do doce ao salgado, do quente ao gelado.
E claro, o vegetarianismo. Ser vegetariana na Índia é como um sonho bom. É sentir-se normal, é compreender uma cultura que cozinha sem carne há anos e que sabe extrair o melhor de cada vegetal, cereal, fruta ou laticínio. A comida vegetariana aqui é saborosa, encorpada, original. As receitas não são adaptações de receitas onívoras, são vegetarianas em essência. A batata não tenta parecer carne, a berinjela não se fantasia de peixe, espinafres são saborosos e não apenas saudáveis. Vegetais são sucos, são pratos principais, chás e remédios. Eles sabem o poder do que comem e são a resposta definitiva para quem acha que ser vegetariano desde criancinha faz mal. 80% dos meus alunos do colégio são vegetarianos desde de bebês e não pretendem deixar de sê-lo. Não é um tabu para ninguém.
Não posso deixar de ressaltar também o imenso respeito que a culinária e o país inteiro demonstram aos vegetarianos. Ser vegetariano aqui é tão normal quanto ser onívoro. Normal, não melhor e nem pior. Os produtos possuem códigos para informar quando algo é vegetariano ou onívoro e é informado no pacote a presença de ovo na receita, para que os veganos os evitem e não apenas os alimentos, até na pasta de dente!
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O símbolo vernelho indica Não-vegetariano e o verde, Vegetariano. |
Os restaurantes declaram em seus nomes se são “pure veg” ou se oferecem refeições “veg” e “non-veg”. Tal respeito é motivado pelas religiões – uma boa parte do Hinduísmo e suas vertentes é vegetariana. Os muçulmanos são todos onívoros. Mas, mesmo sendo motivado por motivos religiosos, não deixa de ser respeitoso com as escolhas que cada um faz. Se no Brasil é um sofrimento comer fora de casa e o vegetarianismo é tão cheio de mitos e preconceitos, aqui é apenas escolha de ingredientes.
Aqui se sabe o que se está comendo. Aqui não tem surpresa, presunto na salada, caldo de galinha no arroz e se tem, é informado. Pedi uma panela de pressão emprestada da vizinha para fazer um feijão e ela me pediu para que eu não cozinhasse carne na panela pois ela e sua família são vegetarianos. Até as panelas são diferenciadas. Pode parecer exagero mas não é. Quem é vegetariano não come as verduras ao redor da carne assada, pois a batata foi cozida junto à carne, alguns por nojo, outros por fatores religiosos (não consumir animais em respeito à vida e às reencarnações), mas o fato é que saber que uma panela nunca foi usada para cozinhar qualquer tipo de carne é a garantia de uma comida realmente vegetariana. Vou dar um exemplo claro disso no Brasil. Sabe o sanduíche no pão árabe da pracinha da Gentilândia? Naquela chapa vai hambúrguer, vai ovo, vai presunto, vai queijo, vai pão, vai tudo. Um sanduíche de lá, mesmo sem carne, não é um sanduíche vegetariano pois a chapa em que tudo é frito é a mesma, assim como a espátula usada. Tentar explicar isso no Brasil é pedir para ser alvo de piadas. Aqui é lógico.
O mais interessante é que as pessoas sabem dos efeitos das diferentes dietas. Sabem que não consumir carne auxilia na performance da Yoga e da meditação. Sabem disso e não contestam, mesmo que sejam onívoros. Comem carne (galinha, carneiro e raramente peixe, carne de boi apenas em alguns restaurantes em Mumbai e em Goa, lugares repletos de estrangeiros) e sabem que é uma escolha, não o que é certo e nem o que é errado.
Quem dera eu pudesse levar na mala, junto com as caixas de massala e livros de receitas, um pouco dessa tolerância para o Brasil. Seria, sem dúvida alguma, a melhor de todas as minhas receitas.