domingo, 30 de dezembro de 2012

Foto-crônica: Drums (Arambol, Goa, India)


Batucadas em meio a um círculo.
Acroyoga ao pôr-do-sol.
Gente colorida.
Malabares de fogo, de tiras.
Prática com lanças.
Bolas de contato.
Músicos com enormes rastafaris tocando para o sol que vai embora lentamente.
Crianças.
Câmeras.
Bicicletas.
Bambolês.
Bolas.
Um casal de ropões pretos, cintos e botas.
Kite surfers rasgando o céu por um momento de velocidade.
Homens que se apoiam nas mãos.
Mulheres que dançam entre chamas.
Cachorros de rua brincando entre as pessoas que lhes dão carinhos e que lhes ignoram.
Cigarros. Maconha. Charutos.
Tatuagens.
Piercings.
Um casal de velhinhos realmente hippies.
Um casal de hippies chiques.
Pessoas que dançam. Tambores.
Góticos.
Pessoas brancas. Pessoas pretas. Pessoas coloridas.
Pais e filhos.
Pais sem os filhos.
Filhos sem os pais.


domingo, 23 de setembro de 2012

Sobre como perder minha câmera me fez ver a Índia com meus próprios olhos



Por um descuido, perdi minha câmera em um tuk tuk de Delhi. Perdi minha câmera com as fotos do India Gate cuja beleza ao pôr-do-sol ficou apenas em minha memória. Até adquirir uma câmera nova, terei que guardar na memória o colorido sujo daqui.

Perder uma câmera em um lugar como a Índia é quase um crime. A cada esquina há uma foto esperando para ser tirada. É um país fotogênico. Todo estrangeiro por aqui porta uma câmera na mão e perto dele, uma grupo de indianos tira foto do que pra eles é mágico: o homem ocidental. Estar em um lugar e não guardar dele uma sequer foto é como não ter estado. Quem vai ao Taj Mahal vai mais pelas fotos (de si, com o Taj ao fundo) do que pelo Taj em si. Não é por menos: nos dias em que vivemos, um evento sem foto não aconteceu. Em todo aniversário o pipocar de flashes dura mais que todos os abraços trocados. Celulares com câmera registram desde amantes fugindo da fúria de esposas traídas até a xícara de café que se toma à tarde, às 4 e meia, via instangram, 5 likes por isso.

Lembrei de quando estava em Hampi e a bateria da câmera descarregou logo no começo de dia reservado ao passeio pelos inúmeros e inenarráveis templos de lá. Pensei, por um breve segundo,  se ainda valeria à  pena continuar a percorrer aquela imensa quantidade de monumentos sem registrá-los, sem levar um pouco de sua beleza comigo. Quando me vi me perguntando se a ausência do registro de um lugar tão bonito me impediria por ele passear, me senti medíocre. Como poderia eu pensar em impedir  que tantas cores penetrassem minhas retinas, simplesmente por não poder dividir minha experiência com meus amigos no facebook? Em que momento da minha vida alguns likes se tornaram mais importantes do que realmente vivenciar o lugar em que estou? Como comparar a experiência de estar em um lugar que tanto vi por fotos com as fotos que dele tirarei?

 Sem câmera, comecei a ponderar sobre a importância de minha fotografia. O quão fiel seria o registro daquele local através de fotos? Como registrar o calor do sol do começo do verão bronzeando meu rosto? Como descrever estar na presença de macacos que vivem livres, entre templos e pedras? Quem era eu para pensar em não aproveitar o silêncio de templos construídos em uma época em que câmeras fotográficas nem sequer existiam?

Sem câmera, sem a necessidade de registrar, sem emoldurar as imagens que eu via, comecei a melhor aproveitá-las. Observei os corpos esculpidos em pedras que parecem dançar como se estivessem vivos diante de mim, como se eu quase pudesse ouvir sua música e também entrar na dança. Entendi melhor adornos que cobriam o chão, o teto e as paredes de um lugar produzido para adoração de deuses coloridos e brilhosos. Percebi o que o olhar dos indianos (que também ali estavam como turistas) via detalhes que meu olhar ocidental perdia.

Sim, perdi minha câmera e com ela o registro de um pôr-do-sol que não cansa de ficar mais bonito a cada nova cidade que conhecemos, mas as sensações que lá tive, o vento no rosto no tuk tuk de ida e no de volta, o beijo trocado ao nos sentarmos à grama e o imenso nome “India” se impondo diante de uma Delhi que anoitece são memórias que jamais deixarão meus sentidos e jamais serão esquecidas, nem por mim e nem em tuk tuk algum. 

domingo, 16 de setembro de 2012

Vamos para Goa!



E enfim, fomos para Goa...durante as monsões. Mas não pensem que foi fácil chegar lá.  Do nosso cantinho em Kerala, é bem difícil viajar.Por ser uma cidade pequena, os ônibus interestaduais só partem de Pallakad e Chochin, há duas horas de Perinthalmana. Além disso, para chegar à Goa de ônibus, é necessário ir para Magalore, em Karnakata e os ônibus que partem para Mangalore são de madrugada. Prometido para 1 da manhã, o ônibus chegou ás três e, exaustos, depois de um dia que incluiu festa de comemoração de Onam e a perda de um de nossos gatinhos, dormimos imediatamente e acordamos em Magalore.

Mangalore é uma cidade de médio porte no Estado de Karnataka, o mesmo estado de nossa adorada Hampi. Adoramos a cidade exatamente por ser mais urbana que Perinthalmana. É uma cidade predominantemente cristã, o que é fácil de perceber pela quantidade de igrejas e o número resumido de mulheres de burca na rua. A passagem para Panjim, Goa era para nove horas da noite então, resolvemos nos dar direito a uma cama e banho. Procurar uma pousada bem baratinha (já que só passaríamos alguma horas) foi uma aventura, mas achamos um local realmente barato...e terrível.  As paredes do banheiro eram pretas de sujeira, o quarto caía aos pedaços e, acreditem, é uma pensão e várias pessoas moram lá. Coisas com as quais você precisa se acostumar ao mochilar: nem toda pousada vai ser um sonho. Devidamente descansados, partimos para o tão sonhado sleeper bus para Goa.

Um ônibus leito, sleeper, na Índia, é algo muito interessante. As camas (literalmente camas) são organizadas na vertical, como beliches. Isso não quer dizer que a viagem vá ser exatamente confortável. Mesmo sendo um ônibus  com ar-condicionado, a estrada de Mangalore para Goa parecia um pesadelo de buracos. Não conseguimos dormir nada.  Quando enfim chegamos em Panjim, às 6 da manhã, uma tempestade nos deu boas-vindas nada agradáveis. Mal sabíamos que a chuva seria nossa companheira durante toda a viagem.

Panjim é uma cidade linda. Há um ditado que diz que “se fores a Goa, não precisas ver Lisboa”. Ainda não conheço Lisboa, mas Goa nos presenteou com certas coisas as quais sentíamos falta há muito tempo: calçadas (é quase impossível achar calçadas em algumas cidades da Índia e quando existem, são quebradas, tomadas de vendedores, mendigos ou restos fisiológicos, se é que você me entende), café com pão fresco (ainda não é um carioquinha, mas é bem melhor que pão de forma), uma arquitetura diferente e, talvez a melhor parte, quase ninguém nos olhando como se fôssemos seres de outro planeta, pois muitos turistas visitam Goa e Panjim é a cidade base para visitar todas as praias. Ficamos em uma pousada muito bonita e durante o processo de check-in descobrimos que o dono da Pousada, Seu João, fala Português fluentemente. Apenas há quarenta anos, Goa conseguiu a Independência de Portugal. Os mais velhos aprenderam Português na escola. As escolas não ensinam Português, mas é possível ver nas placas de lojas, nomes de ruas e nomes dos pratos típicos que os Portugueses deixaram sua marca definitiva por aqui.

No dia seguinte à chegada em Panjim, fomos às praias. Uma decepção. Talvez um pouco de saudosismo tempere esta frase mas, até agora, não existem praias mais bonitas que as praias do Ceará. Visitamos Anjuna e as pedras na praia, a maré alta, e chuva nos fizeram perceber que o sonho de dias de paz e yoga à beira do mar não seriam possíveis. Tentamos conhecer as demais praias mas a chuva não deixou e nos recolhemos à pousada, tristes e sem esperanças. Logo ao amanhecer, resolvemos que íamos tentar as praias do Sul de Goa, mais desertas e menos turísticas. Quase desistimos ao checarmos a metereologia e darmos de cara com uma promessa de chuva infinita. Pensamos em passar o resto dos dias em Hampi, vermos as tão sonhadas estátuas do Kama Sutra, pensamos em visitarmos as cidades sagradas do Norte e até pensamos seriamente em voltar para casa, mas fomos para o Sul e nenhuma decisão nessa viagem foi mais sábia. Antes de saírmos de Panjim, nos armamos de capas de chuva estilo Poncho. Agora podia chover canivetes, estaríamos pelo menos parcialmente secos.


Duas horas e meia de viagem um ônibus de linha interestadual (o que quer dizer nenhum estrangeiro, assento desconfortável, passagem bem barata e um motorista sem nenhm senso de leis de trânsito básicas tais como diminuir a velocidade antes de uma curva fechada e com a pista molhada), chegamos em Palolem e nenhuma palavra foi dita: era exatamente o que queríamos. Achamos uma pousada linda, super baratinha, com água quente e uma varandinha maravilhosa. A praia era exatamente o que esperávamos, com exceção da chuva e da água escura e perigosa do mar árabe.

 



Munidos de nossas capas de chuva (sem elas, esse feriado teria sido terrível), passamos dias de tranquilidade, sono calmo, comidas gostosas, reflexão sobre a vida e muita Yoga. Provamos o tão famoso  Veg Vindaloo (vinho e alho) e não gostamos pois é apimentado demais. Provamos o feni, a bebida local e também não achamos essas coisas todas. Ficamos pensando que quem disse no guia Lonely Planet que Feni é quase impossível de beber de tão forte provasse cachaça, ele não sobreviveria.Adoramos a comida de Goa. Foi a primeira vez em que vi todas as especiarias daqui bem utilizadas, sem que o chili determine o gosto da comida. O arroz com canela em pau vai virar lei lá em casa!


Mesmo na baixa estação, muitos estrangeiros estavam em Palolem. Até mais do que no tão badalado Norte. É sempre interessante observar viajantes. Quando pensamos pessoas viajando pela Índia, imaginamos um estereótipo “hippie de dreadlock” que está bem longe de ser maioria por aqui. Há muitas famílias, muitos casais, pessoas de todas as idades, nacionalidades e com objetivos de viagem bem distintos. Talvez na alta estação, o público mude já que a maioria dos estrangeiros quando estávamos por lá eram  Alemães e Austríacos, já que esse é o período de férias em seus países de origem.

Nos últimos dois dias em que estivemos lá, o sol resolveu aparecer em alguns momentos do dia e organizamos uma aula gratuita de Yoga na praia para quem quissesse participar.  Divulgamos nos restaurantes e pousadas e a notícia correu por si só. Fizemos uma hora de yoga com mais 10 pessoas. O feedback foi maravilhoso e todos estão adicionados à nossa página do Facebook, Jamie & Val Yoga Classes. Pretendemos repetir a experiência por aqui e levar a idéia ao Brasil, já que a Yoga é tão cheia de mitos e mistérios em terras tupiniquins. Recebemos até uma proposta de um resort para ministramos aulas por lá durante a alta estação, mas nosso compromisso a escola nos impede. Quem sabe para os próximos anos, não é?

Não vimos a Goa de raves e loucuras. Não usei meu biquini sequer uma vez. Conhecemos Goa financeiramente acessível, tranquila e de paz. E era exatamente o que procurávamos. Tá, faltou banho de mar e marquinha de biquini, mas a Índia é imprevisível. Quando voltarmos para o Ceará, tiraremos o atraso.

A viagem de volta foi um pesadelo diante da única opção de um ônibus leito sem ar-condicionado.  Apelidamos carinhosamente esse transporte de Non-AC Popcorn Sleeper bus, já que as crateras na estrada que foram desagradáveis na viagem de ida, foram insuportáveis na viagem de volta e a suspensão no ônibus praticamente não existia. Literalmente pipocávamos dentro da cabine em cada buraco. Recuperamos parte do sono em Magalore e a chegada em casa foi triste pois, com a ausência do Surya, o Namaskara fugiu.

 Agora somos apenas nós dois e um monte de sonhos pela frente. 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Mais 11 meses de Índia e Kerala, God's own country


As famosas House Boats do Estado de Kerala



Era pra ser uma aventura de 7 meses. Enquanto escrevo esse post, já deveria estar de volta ao Brasil. Mas a vida deu um jeitinho de me deixar ficar mais um pouco, como se ouvisse da Índia dizendo: “Relaxa, toma um chai e aproveita que quero que você me conheça um pouquinho mais.” E eu não tive coragem de recusar um convite tão tentador.
Love overseas

Nem eu e nem o Val. Agora somos uma família. Temos um apartamento só nosso, decorado do nosso jeitinho, rodeado de coqueiros, seringueiras, bananeiras, jaqueiras, muito verde e pássaros, muitos pássaros. Temos filhos – Surya e Namaskara – um par de gatinhos que nos apareceu exatamente quando mais sentíamos falta da companhia e alegria felina. Deixamos Hyderabad, a agitação da High Tech city e voltamos para o colinho bom da natureza. E ela nos recebeu de braços abertos. Pela primeira vez, moraremos juntos, sem flatmates. Brincar de casinha está sendo ótimo.
Surya e Namaskara, num momento de paz


Não há fotos da viagem pois foi traumatizante demais viajar com dois filhotes de gatos em um ônibus interestadual. Até que enfim a burocracia Indiana nos favoreceu e conseguimos viajar com eles, mesmo não sendo nem de longe permitido. Pedimos extensão do visto para os 11 meses que a escola em que trabalhamos agora pediu, mas a imigração só nos deu dois. Resultado; daqui há dois meses, lá vamos nós para Delhi mais uma vez. Mas, não tem aperreio, não. Se há uma coisa que aprendi por aqui é que é preciso ter calma, ser tolerante e entender que, se fizermos tudo direitinho, mesmo com todos os contratempos, tudo acaba dando certo. É o “jeitinho Indiano”, uma versão mais desesperadora do “jeitinho Brasileiro”. E assim como no Brasil, ou você se acostuma ou seguirá com uma dor de cabeça eterna.

Ah, Kerala...Antes soubesse algo sobre suas belezas antes de botar meus pezinhos Brasileiros na Índia. Chamada de “God’s own country”, tenho até vontade de acreditar em Deus e imaginar seus passos por essas terras tão bonitas. Você sabe que chegou em Kerala quando começa a ver coqueiros e homens vestindo “lunguis”, além do fato de que provavelmente estará chovendo. De clima tropical, Kerala, no sul da Índia, foi o primeiro local a ser “descoberto” por Vasco da Gama em 1498. Os Ingleses, que de bom mesmo pra Índia só deixaram o Inglês, seguiram a linha ladrão que rouba de ladrão e tomaram tudo o que os Portugueses haviam dito que eram deles por volta de 1647 e é por isso que quando digo que somos do Brasil, existe certa sensação de que somos todos da mesma família. E por falar em Brasil, aqui por Kerala não é Críquete (o esporte favorito dos Indianos) que é paixão entre os meninos e sim o futebol. Disseram-me até que durante a Copa do mundo metade de Kerala torce pela Argentina e a outra metade pelo Brasil e não é raro ver a camisa canarinho (em geral com o nome do Ronaldinho) pelas ruas.
O famoso Chutney de côco

Um parágrafo para a culinária não pode faltar. Enfim saímos da Capital Mundial da Pimenta e viemos para a terra do óleo de côco. Praticamente todas as comidas daqui são preparadas com esse saboroso e aromático óleo, que serve para a cozinha e também para a hidratação do corpo e do cabelo imenso das Indianas. A banana chips frita no óleo de côco é um lanche irresistível. O chutney de côco servido junto à Masala Dosa ou à refeição servida na folha de bananeira é um tapa na cara da nossa culinária que só usa côco para doce. E embora o côco seja utilizado largamente, raramente é possível achá-lo nas vendinhas e supermercados. É que cada família possui seus próprios coqueiros no quintal de casa. O arroz, item básico da culinária indiana (que é também um dos principais ingredientes da Masala Dosa) é diferente do consumido no resto da Índia. É um arroz integral, avermelhado, com gostinho de interior. Ah, já mencionei por aqui que o arroz daqui não leva tempero algum? Loucos por sabores fortes, o arroz dos Indianos é temperado com o Dal, molho saborossíssimo à base de lentinhas amarelas, temperado com uma cebolinha minúscula e com Green chilli. Enfim posso ir a qualquer restaurante e comer o que der na telha sem me preocupar se será apimentado demais pro meu paladar. A liberdade só não é maior pois Kerala cuja população é 90% onívora, por ser de maioria Muçulmana e Cristã. É a primeira vez que achamos carne de vaca oferecida em um cardápio, com exceção das cidades turísticas por onde passamos. Isso não quer dizer que a oferta vegetariana não exista. Em qualquer restaurante, as opções vegetarianas são lei. Ponto pra Índia mais uma vez.

Dizem por aqui que o Perinthalmanês passa metade da vida levantando a Lungui e tranformando em uma espécie de mini-saia. A outra metade da vida é baixando em saia longa.

A cidade em que moramos é uma cidadezinha chamada Perinthalmana em que, procurando, se acha de tudo. Os homens andam na rua e trabalham de lungui e a quantidade de mulheres de burca por aqui é imensamente maior que em Hyderabad. Há mais lojas de jóias do que pescoços para pendurar tanto ouro e pedra preciosa e as lojas de produtos semi-novos oferecem itens como um Iphone 4 por 9000 rúpias (R$ 330 reais). É que o Perinthalmanês só quer saber de coisa nova. A população tem um poder aquisitivo bastante considerável, uma vez que essa cidade é conhecida como “A cidade dos Hospitais” e médico aqui ganha muito bem. A alopatia é vizinha da Ayurveda (medicina natural ancestral dos Vedas, povo que também desenvolveu a Yoga), e não é difícil ver uma farmácia logo ao lado de um centro de terapia ayurvédica. E como santo de casa não faz milagre, a alopatia é preferida pela maioria da população. Já mencionei o quão raro é um Indiano fazer Yoga?

Zen room

Falando em Yoga, enfim temos nosso cantinho de meditação e prática. Nosso apartamento tem dois quartos e foi unânime a decisão de transformá-lo no cantinho Zen que precisávamos para levar essa paixão/profissão adiante. Em Hyderabad, nos formamos professores de Yoga, mas, embora tenhamos o conhecimento inicial para ensinarmos, a Yoga é e sempre será um assunto sobre o qual não se sabe tudo, mesmo após anos e anos de estudo e prática. Dizem por aqui que uma vida não basta para se saber tudo sobre Yoga e eu estico a frase para a Índia. Quando eu achava que sabia alguma coisa daqui, vem Kerala e me surpreende.
Vista da janela do quarto


Muitas surpresas e descobertas nos aguardam por aqui. Ao fim, teremos quase 2 anos de experiência de Índia e sei que ainda será pouco. Ajeito meu sári, checo se meu bindi está no canto e sento confortavelmente na poltrona de nossa sala.  O Brasil que me espere pois receberei daqui pra frente a Índia para jantar.
Ó lá o Brasil.

domingo, 1 de abril de 2012

Série: In India Only

Mais uma série para o blog: In India Only Há coisas que acontecem conosco por aqui que são acreditáveis. Situações que jamais aconteceriam em nossos países de origem mas que, por estarmos na Índia, acontecem diariamente. Quando as pessoas dizem que a Índia é mágica, elas não se referem apenas aos templos e tradições. Há algo de místico que nos acompanha, uma espécie de boa sorte. A história de hoje aconteceu em Fevereiro deste ano.

O resort em Hampi 



Estávamos sem dinheiro para viajar, mas queríamos muito passar uns dias com nossa flatmate favorita, Catherine. Juntamos o que tínhamos e lá fomos mais uma vez para Hampi. No segundo dia de viagem, o dono da pousada (que já havia virado amigo pois ficamos na mesma pousada na visita anterior) nos aparece com uma proposta de trabalho: sermos host de um casamento indiano em um resort. Á primeira vista o convite foi ignorado, estávamos em Hampi para nos divertir e não para trabalhar. Sabíamos como ia ser, já trabalhávamos em alguns casamentos em Hyderabad e o serviço é cansativo e estressante. Quando já havíamos desistido da proposta, o gerente do resort aparece na pousada querendo conversar conosco. A proposta era para mim e para Catherine, mas o Val poderia vir conosco. Pagavam pouco, mas ofereciam meio mundo de vantagem. Passaríamos a noite no resort e trabalharíamos às 11:30 do dia seguinte. Topamos, um carro nos pegaria às 18:30.

Quando o carro chegou ao resort, era difícil acreditar no que estávamos vivendo. Era um resort imenso repleto de atrações. Fomos recebidos com colares, pétalas de rosas, tikka no terceiro olho e suco de abacaxi. Tudo parecia tão absurdo que até evitei de tomar o suco com medo de qualquer sonífero usado para venda de órgãos! De pouquinho em pouquinhos, fomos sendo apresentados às atrações do resort. Mahendi designers, um grupo de dança típica do Radjistão (com dançarinas com roupas lindas equilibrando imensos potes na cabeça e nas mãos e até homens cuspindo fogo), um mágico que fez surgir em nossas mãos o aroma que imaginamos sem sequer nos tocar e um passeio um tanto estúpido de cavalo e de camelo. Após conhecermos o resort, fomos levados ao nosso quarto cinco estrelas que deixava o quarto da pousada na qual estávamos hospedados com ares de favela.



Devidamente arrumados, fomos jantar a típica comida do rajistão, extremamente apimentada e deliciosa. Curry após curry, cada um mais gostoso que o outro, nem queríamos a sobremesa. Mas a equipe que nos servia insistiu e comemos a melhor sobremesa de nossas vidas. Dormimos com a sensação de que já estávamos sonhando quando acordados.



No dia seguinte, após um maravilhoso café da manhã, fomos convidados a experimentar uma massagem ayurvédica. Nos perguntávamos constantemente se tudo aquilo era realmente de graça e, caso não fosse, como pagaríamos por tudo aquilo. Só a diária do hotel custava nosso salário mensal inteiro! Aproveitamos a massagem, a piscina e perto da hora de trabalharmos, duas mulheres foram enviadas pelo gerente para que nos ajudassem a amarrar nossos sáris. Devidamente "indianas", seguimos para almoçar.

A tenda reservada para o almoço era maior que a maioria dos buffets de Fortaleza. Dezenas de mesas repletas de comidas e sucos. Tudo feito na hora, as chappatis com ou sem ghee, como o convidado preferir. Sorvete caseiro servido na folha de bananeira, chutneys, dals...tudo fervendo, muitos aromas. Tivemos que comer rápido pois os convidados estavam chegando. O trabalho resumia-se a receber os convidados na entrada do casamento, eu com tikka (um pozinho vermelho riscado entre as sobrancelhas que é sinal de benção entre os Hindus) e Catherine com pétalas de rosas. Era comecinho de verão, portando, não podemos dizer que o serviço foi agradável, mas observar a diversidade dos convidados foi interessante. Os casamentos na Índia são mega-eventos e os convidados viajam do país inteiro para não perder a festa. Mulheres de sáris brilhantes, repletas de ouro, assim como os homens, geralmente em kurtas ou em ternos. Crianças com olhos imensos, nos olhando com muita curiosidade. Somos uma das atrações da festa, os estrangeiros da festa, objetos caros e raros de decoração. Não sabemos se eles gostam de estrangeiros trabalhando em festas por sermos diferentes ou por, lá no fundo, eles se vingarem dos anos de exploração dos Britânicos.

Quando voltamos para nossa pousada guiados pelo motorista do gerente, estávamos sem palavras. Fomos para Hampi quase sem dinheiro e acabamos passando um dia em um resort e ainda recebemos 1500 rúpias cada uma (devidamente gastos nas maravilhosas e confortáveis roupas turísticas indianas). O Val não recebeu nada, mas na verdade foi o que mais ganhou. Sequer trabalhou e aproveitou tudo, sendo tratado como Mister Val.


Coisas que só acontecem na Índia. Ou como eles dizem por aqui, in India only.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Trabalhar na Índia - As relações de trabalho e as escolas


DRS International School, a escola em que trabalho aqui na Índia


Antes de vir para cá, eu acreditava que trabalhar em uma escola internacional seria um desafio e tanto. No começo foi. Foi a primeira vez que tive a oportunidade de trabalhar em um ambiente de Inglês constante, com alunos fluentes no idioma e também a primeira vez que trabalhei em uma escola de ensino básico e obrigatório – meus dez anos como professora resumem-se ao mundo das aulas particulares, escolas regulares de idiomas, cursos especiais para empresas e ensino universitário semi-presencial. Sempre fugi das escolas, confesso. Medo talvez. Do excesso de trabalho, da falta de respeito dos alunos em relação aos professores, da má remuneração, das péssimas condições de trabalho e recentemente, da constante violência que, infelizmente, virou rotina nos telejornais. É talvez a maior das ironias do mundo que em minha primeira experiência fora do país eu venha a trabalhar em uma escola.



A escola é um mundo completamente diferente. Diferente das escolas de idiomas em que, na maioria das vezes, os alunos estão lá por quererem aprender um idioma e vejo os alunos no máximo duas vezes por semana, aqui vejo os alunos todos os dias, de segunda a sexta e minha tarefa é melhorar o Inglês que eles já falam. Por ser uma escola internacional e por Inglês ser um dos idiomas oficiais do país, essa é a língua franca da escola. Suas línguas maternas são estudadas como segundas línguas, seja Hindi ou Telugo, a língua oficial do estado em que moro, Andhra Pradesh. Além disso, são aulas de Espanhol e Francês são disponibilizadas para os alunos do Ensino Médio, aqui chamados de Secundary (bem como são as aulas em Inglês nas escolas do Brasil, uma aula por semana completamente ineficiente). Se qualquer outro idioma que não Inglês fora das aulas de segunda língua, os alunos são punidos com cartões amarelos que, dependendo da recorrência, podem até resultar em expulsão. Funciona – raramente vejo alunos burlando essa regra com algumas exceções, mas os professores, principalmente os de Hindi e Telugo não seguem tal regra. Além disso, há pouco esforço por parte dos professores em falarem Inglês corretamente e não estou falando no sotaque e sim de regras gramaticais básicas. Alguns falam muito bem, outros apenas se comunicam. A imersão é interessante, mesmo com falhas, mas é imensamente mais eficiente do que o pouco que ví das escolas bilíngues em Fortaleza.



O relacionamento com colegas de trabalho em um país como a Índia é um desafio constante, mas depois que se pega o jeito, dá para passar a maior parte dos seus dias sem grandes conflitos. O maior dos problemas é a passividade. O Indiano costuma aguentar calado uma situação que não lhe agrada e, acostumados a obedecer hierarquias desde muito cedo, não compreendem nossa tendência ao diálogo. Para a gente, se há um problema, o melhor é conversar. Para o Indiano, chega a ser quase uma ofensa, conversar sobre um problema é o último estágio, o que beira o insuportável. Há até quem prefira demitir-se a contestar uma decisão de um superior. Isso não quer dizer que não haja fofoca. Para falar a verdade, na maioria das vezes em que saio da sala para pegar cópias ou café, vejo grupinhos de professores fofocando com pequenos copos de chai nas mãos – sempre em qualquer outro idioma que não Inglês.
Uma das ilustrações do PYP, a lei equivalente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira


Como em toda a Índia, há mais gente trabalhando na escola do que o realmente necessário. Há pessoas para funções tão específicas e pontuais que, no Brasil, só seria necessária uma pessoa ao invés de cinco, mas aqui, cinco são requisitadas. Não apenas na escola em que eu trabalho essa é uma prática comum. Nas sapatarias, há um funcionário encarregado de calçar e descalçar os sapatos nos clientes. Se não há emprego, cria-se um e assim a economia vai seguindo. Os salários de quem é contratado para essas funções pontuais é irrisório, mas eles continuam em suas funções por ser melhor que nada.
Digamos que a maioria dos professores se encontram na aceitação hostil


Os alunos, como em praticamente qualquer lugar do mundo,  temem mais que respeitam os professores. A hierarquia, como já disse, é coisa séria e somos chamados de Sir e Madame seja lá onde formos e principalmente na escola. Os alunos são treinados a se levantar quando um professor entra na sala e cumprimentá-lo com um melodioso“Good morning, ma’m”. Como a postura do professor é baseada em hierarquias e respeito imposto, as aulas são repletas de gritos, ameaças e punições. Levei um tempo para tentar entender como é possível aprender em um ambiente tão opressor, mas depois de um tempo, entendi que é o mesmo sistema utilizado em casa. O pai manda em todos, a mãe nos filhos e os filhos não mandam em ninguém. Por ser uma escola internacional, talvez a postura devesse ser diferente. Talvez eu não tivesse aguentado um mês por aqui se eu tivesse ficado nas salas de aula e não tivesse sido destacada para o Laboratório de Língua Inglesa. Lá, trabalho sozinha e consigo ministrar minhas aulas como aprendi no Brasil e provo todos os dias que não é necessário gritar com as crianças. Nunca tive que gritar ou mandar aluno algum para a coordenação, pois em minhas aulas tenho minhas próprias regras. Como não podia deixar de ser, a fofoca de que meu modo de ensinar é diferente rapidamente chegou aos ouvidos dos professores por meio dos próprios alunos e eventualmente um professor ou outro pede para assistir minha aula e eu fico muito feliz quando isso acontece, pois essa é a prova de há professores que querem mudar suas posturas em sala. Minhas flatmates que ficaram nas salas de aula envelhecem mais rapidamente que eu e estão constantemente estressadas com as aulas e com os alunos. Vai ver eu não nasci mesmo para dar aula em escolas.
Meus alunos no laboratório em que trabalho


Não posso deixar de comentar sobre as folgas. Aqui, trabalhamos de Segunda à Sábado. O ônibus da escola chega à porta de nosso apartamento pontualmente às 8 da manhã e nos traz de volta às 3:15. São oferecidos café-da-manhã, almoço e lanche na escola. Para os intercambistas, a alimentação faz parte do contrato, para os demais professores e alunos,  cada refeição custa 25 rúpias (1 real). Cada professor tem direito a uma casual leave (falta programada) por mês e no segundo sábado do mês não há aula. É necessário guardar essa falta programada para o caso de doença – diferente do Brasil e da maioria dos países do mundo, não há a prática do respeito ao atestado médico. Aqui tal documento não importa. Questionei a supervisora acerca desse assunto, expliquei que ninguém fica doente por querer e quando se adoece, há gastos e não é justo que seu salário seja diminuído em razão de algo que te deixa de cama, incapaz de trabalhar e ainda tendo o risco de passar algum vírus para os alunos. Além disso, por ser uma escola internacional, regras como essas deveriam ser mais flexíveis. Não adiantou muita coisa, mas foi plantada a sementinha. A verdade é que o asiático vê o trabalho de forma inquestionável, obrigatório, algo enviado por deuses e que deve ser cumprido, doente ou não.
Líder de sala monitorando os corredores em um Sábado de Encontro com Pais


Aprendi muito nesses quarto meses. Aprendi que o meu jeitinho Brasileiro pode ser muito útil dentro da complicada e burocrática estrutura de trabalho indiana. Quando fui enviada ao laboratório, tentei em vão conseguir que as janelas fossem cobertas com cortinas para evitar curiosos e evitar a curiosidade dos alunos e conseguir a tão sonhada atenção completa deles. Na segunda semana de pedidos, quando vi que nada aconteceria, tratei de eu mesma criar uma cortina improvisada – criei quadros de avisos e ocupei todas as janelas com cartazes, avisos e reportagens de revistas. Problema resolvido, menos rugas, mais qualidade de vida. Ninguém jamais reclamou do arranjo – na verdade a escola ficou feliz por ser um problema a menos. Quer dizer, para certas coisas, a insistência é vã. Uma boa quantidade de atitude com uma pitada de criatividade podem transformar os lugares mais inóspitos em lugares agradáveis. Aqui precisei me impor, coisa que raramente precisei fazer no Brasil. Talvez seja esse o grande aprendizado desse intercâmbio – aprender a desenvolver meu trabalho como considero certo e eficiente sem bater de frente, comendo pelas beiradas, aprendendo o que for melhorar minha prática e descartando aqui que não é interessante. Nem tanto ao mar e nem tanto à terra, ou melhor, nem tanto à India e nem tanto ao Brasil.


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Balanço dos 4 meses na Índia - A culinária, os temperos e a tolerância


Quatro meses na Índia. Como o tempo passa rápido! Talvez tenha chegado a hora de fazer o balanço desse tempo por aqui. O intercâmbio acaba em Abril, mas ainda não sabemos bem o que vamos fazer. Só sabemos que não vamos parar de viajar. Os planos consideram possíveis olhos apertados ou salsa. São apenas planos, mas com o passar do tempo, tornam-se cada vez mais urgentes e cada vez mais urgente é a necessidade de conhecer o que der daqui. São apenas três meses a mais e três meses passam muito rápido.

Após quatro meses, a Índia mostra suas verdadeiras cores. Para quem chegou sem saber quase nada, cheia de receios, mitos, medos e um milhão de expectativas, até que ando aprendendo bastante por aqui. Vou buscar falar sobre cada um desses aspectos, com reflexões sobre esses quatro meses, em vários posts, assim me forço a escrever por aqui e me aprofundo em cada um dos assuntos.

A culinária, os temperos e a tolerância





A comida da Índia não é apimentada – ela é saborosa. É uma culinária de muitos temperos, muitas técnicas. Aparentemente, pode parecer rústico demais cozinhar com as mãos, mas sentir os ingredientes da receita, buscar aromas, tentar reconhecê-los, tentar utilizá-los da maneira certa é absolutamente fantástico. Vou comprando os temperos de pouquinho sempre que provo uma receita nova, utilizando progressivamente cada uma das inúmeras massalas. Quero voltar ao Brasil tendo uma boa noção da culinária indiana. Para isso, viajar para outros estados foi essencial. Ler livros de culinária e ver vídeos no You Tube também.

 As regiões da Índia possuem diferentes hábitos em relação a alimentação. Algumas regiões indianas possuem pratos ou menos apimentados, como o Biryane de Hyderabad, apimentado demais até para os próprios indianos. Comendo a comida da escola todos os dias, nos habituamos aos nomes, aos sabores, ao que é suportável e o que é insuportável. A cada dia, conhecemos um novo item de café-da-manhã que não nos faz sentido e, provando novamente, ele parece ser um pouco mais coerente, como o Idli, uma massa branca parecida com aquelas tapiocas redondas feitas na chapa, mas completamente sem gosto. É necessário aprender que se for quebrado no molho com o qual ele é oferecido, o Idli pode ser delicioso. A refeição inteira é saborosa, desde o dal (molho de lentinhas) que se coloca sobre o arroz, até a refeição principal, passando pela chapatti, sem esquecer da sobremesa.

 Sim, a comida do Brasil também é extremamente saborosa, não me entendam mal, mas como esse é o país das especiarias, uma refeição tem até 10 vezes mais temperos variados em relação à comida Brasileira. Pimenta preta, branca, malagueta, dedo de moça, cominho, orégano, cheiro verde, cebolinha, alho, cebola, óleo de dendê,pimentão, pimenta de cheiro, tomate, óleo de oliva e manjericão são praticamente tudo o que usamos em na nossa culinária mas aqui a oferta de condimentos é tão grande que os temperos são raramente vendidos separadamente e sim em misturas, as massalas. É um festival de sabores – do doce ao salgado, do quente ao gelado.

E claro, o vegetarianismo. Ser vegetariana na Índia é como um sonho bom. É sentir-se normal, é compreender uma cultura que cozinha sem carne há anos e que sabe extrair o melhor de cada vegetal, cereal, fruta ou laticínio. A comida vegetariana aqui é saborosa, encorpada, original. As receitas não são adaptações de receitas onívoras, são vegetarianas em essência. A batata não tenta parecer carne, a berinjela não se fantasia de peixe, espinafres são saborosos e não apenas saudáveis. Vegetais são sucos, são pratos principais, chás e remédios. Eles sabem o poder do que comem e são a resposta definitiva para quem acha que ser vegetariano desde criancinha faz mal. 80% dos meus alunos do colégio são vegetarianos desde de bebês e não pretendem deixar de sê-lo. Não é um tabu para ninguém.


Não posso deixar de ressaltar também o imenso respeito que a culinária e o país inteiro demonstram aos vegetarianos. Ser vegetariano aqui é tão normal quanto ser onívoro. Normal, não melhor e nem pior. Os produtos possuem códigos para informar quando algo é vegetariano ou onívoro e é informado no pacote a presença de ovo na receita, para que os veganos os evitem e não apenas os alimentos, até na pasta de dente!

O símbolo vernelho indica Não-vegetariano e o verde, Vegetariano.


Os restaurantes declaram em seus nomes se são “pure veg” ou se oferecem refeições “veg” e “non-veg”. Tal respeito é motivado pelas religiões – uma boa parte do Hinduísmo e suas vertentes é vegetariana. Os muçulmanos são todos onívoros. Mas, mesmo sendo motivado por motivos religiosos, não deixa de ser respeitoso com as escolhas que cada um faz. Se no Brasil é um sofrimento comer fora de casa e o vegetarianismo é tão cheio de mitos e preconceitos, aqui é apenas escolha de ingredientes.



Aqui se sabe o que se está comendo. Aqui não tem surpresa, presunto na salada, caldo de galinha no arroz e se tem, é informado. Pedi uma panela de pressão emprestada da vizinha para fazer um feijão e ela me pediu para que eu não cozinhasse carne na panela pois ela e sua família são vegetarianos. Até as panelas são diferenciadas. Pode parecer exagero mas não é. Quem é vegetariano não come as verduras ao redor da carne assada, pois a batata foi cozida junto à carne, alguns por nojo, outros por fatores religiosos (não consumir animais em respeito à vida e às reencarnações), mas o fato é que saber que uma panela nunca foi usada para cozinhar qualquer tipo de carne é a garantia de uma comida realmente vegetariana. Vou dar um exemplo claro disso no Brasil. Sabe o sanduíche no pão árabe da pracinha da Gentilândia? Naquela chapa vai hambúrguer, vai ovo, vai presunto, vai queijo, vai pão, vai tudo. Um sanduíche de lá, mesmo sem carne, não é um sanduíche vegetariano pois a chapa em que tudo é frito é a mesma, assim como a espátula usada. Tentar explicar isso no Brasil é pedir para ser alvo de piadas. Aqui é lógico.

O mais interessante é que as pessoas sabem dos efeitos das diferentes dietas. Sabem que não consumir carne auxilia na performance da Yoga e da meditação. Sabem disso e não contestam, mesmo que sejam onívoros. Comem carne (galinha, carneiro e raramente peixe, carne de boi apenas em alguns restaurantes em Mumbai e em Goa, lugares repletos de estrangeiros) e sabem que é uma escolha, não o que é certo e nem o que é errado.

Quem dera eu pudesse levar na mala, junto com as caixas de massala e livros de receitas, um pouco dessa tolerância para o Brasil. Seria, sem dúvida alguma, a melhor de todas as minhas receitas.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Viagens pela Índia: Hampi!


Ah,Hampi...
Vontade de morar contigo, Dona Hampi.



A recomendação de que dois dias ou três seriam suficientes para ver tudo por aqui foi, sem dúvida, a informação mais errada que já tivemos desde que chegamos na Índia. Hampi não pode ser visitada com pressa, nem muito menos com objetivos meramente turísticos (leia-se visitar lugares bonitos e tirar fotos). Hampi deve ser vivenciada. É preciso acordar cedo para aproveitá-la e acordar tarde por tê-la aproveitado demais pela noite. É preciso deixar o relógio em casa e buscar se orientar pelo sol e pela fome. Há coisas demais para ver, muitas ruínas, muitos templos, mais história do que a minha cabeça de Brasileira consegue entender. Encontramos com uma Brasileira que já viajou para diversos lugares históricos e que disse que, comparado à história mundial, o Brasil não tem história. Discordo. Não podemos considerar história apenas quando os Portugueses tomaram para si a terra que era de direito dos Índios e se sabemos tão pouco da história dos nossos nativos, é por culpa nossa e a Índia dá uma lição de como manter e propagar conhecimento por milênios, mesmo com séculos e séculos de exploração por vários povos. Para descobrir tudo, preferimos não contratar um guia. Além de economizar, tomamos a decisão de que descobriríamos Hampi sozinhos. Um guia é tentador, mas queríamos a liberdade de descobrir os lugares ao nosso tempo, já que estamos passando quase duas semanas aqui. Às vezes faz falta. Muitas vezes estivemos em frente a um monumento sem fazer idéia do que ele significa, mas anotamos o nome e pesquisamos tudinho depois. Comprei o guia Lonely Planet da Índia, mas ele vai ser útil de verdade nas viagens para o Norte. Por hora, estamos bem. É meio triste ver crianças trabalhando como guias e resolvemos não colaborar com isso. Aliás, trabalho infantil na Índia é cena constante, ( a grande maioria dos guias são crianças) seja em mercadinhos, seja como guia ou nos imensos arrozais e canaviais, com o sol à pino. Melhor puxar assunto com um local e saber de quem cresceu por aqui as informações passadas de gerações em geração e se tem uma coisa que indiano adora é conversar.
Alugamos uma motoca automática para conseguirmos explorar Hampi por nós mesmos. Rimos tanto de nossa inabilidade que ficamos com as bochechas doendo por dias!



Refletindo bem, talvez a melhor parte em viajar para um lugar como esse são as pessoas com quem encontramos. Pessoas de todas as idades, de todas as nacionalidades, tipos físicos, orçamentos e estilos de vida passam por aqui.. Hoje, escrevendo esse post, tomo chá de menta e ouço uma família de franceses na mesa à esquerda, jovens chineses à direita, um casal à minha frente que fala uma língua que não consigo identificar e a conversa animada na cozinha mistura aromas com Hindi e Kanada.  Pessoas exóticas desde um Africano de rastafari loiro e olho azul piscina que passou o ano juntando dinheiro para viajar de cidade em cidade pela Índia até uma senhorinha de cabelo branco que só em Hampi já veio três vezes,  que resolveu envelhecer só no corpo, que conversa conosco como se tivéssemos feito faculdade juntos, que resolveu que não ia passar o Natal com os três netos e ao invés de peru, comeu panner e bebeu rum até altas horas da madrugada. Encontramos uma quarentona Holandesa que fala Português com sotaque paulista por ter namorado um Brasileiro e que me pede para falar Português com ela com um suave “Fala, minha filha”. Vemos familias de bochechas rosadas dividindo espaço com mochileiros, comprando água, coco e bananas, para si e para os macacos, enquanto uma indiana com prata nas orelhas, no nariz, nos dedos e até nos cabelos tenta nos vender bolsas e braceletes. Enquanto observo a cena narrada, um rapaz tenta convencer um casal rosado a comprar cogumelos alucinógenos enquanto um policial passa indiferente à cena.
Côco docinho, docinho...

Embora seja proibida a venda e o consumo de álcool do lado sagrado de Hampi (embora no Natal cervejas e rum tenham surgido quase que do nada), a oferta de maconha, haxixe e cogumelos é constante. Por dia, pelo menos três pessoas nos oferecem “special magic” em plena praça pública, como quem vende água ou roupas (muitos motoristas de tuk tuk e vendedores de roupas por aqui têm a venda de tais itens como segunda renda). A visão diante do consumo de maconha por aqui é bem diferente. Em muitos templos na Índia, a maconha é utilizada como auxílio na prática do relaxamento e da meditação e ouvi falar que há templos que utilizam até cogumelos. Já o álcool não é bem visto. Até mesmo em Hyderabad é complicado tomar uma cervejinha qualquer. É raro encontrar um restaurante com opções de bebidas alcóolicas no cardápio e se você pedir, é possível que o garçon arranje para você, “special customer”, mas é necessário deixar a garrafa embaixo da mesa e consumir o conteúdo dos copos discretamente. Não há álcool nos supermercados. Há lojas especializadas na venda de bebidas alcoólicas, em geral abarrotadas de homens que pedem, compram e saem desconfiados com suas sacolas pretas. Uma vez em Hyderabad, inventei de comprar uma Kingfisher (a Antártica daqui) e, sem perceber, parei o estabelecimento. Ver uma mulher comprando cerveja deve ter sido chocante – daquele dia em diante, tal função é do Val.
Conviver com macacos é uma experiência engraçada. Não dê bobeira com comida perto deles.


Não posso deixar de falar dos macacos de Hampi. Eu não vi muitos macacos na vida. Não sei se um soin aqui e outro acolá conta alguma coisa. Só sei que em Hampi ( e acredito que em várias outras cidades),é possível cohabitar com macacos, vacas, bodes, corvos, corujas, esquilos, pombos e até elefantes. Eles são tão moradores daqui quanto qualquer outro ser humano. Com a proibição de consumo de carne em boa parte de Hampi por motivos religiosos, a fauna local vive quase sem impacto dos homens. Explico meu quase. Todos os dias, às 8 e meia da manhã, a elefoa Lakshimi sai do templo onde mora acompanhada de dois homens para seu banho. Ela desce as enormes escadas em direção ao rio. Lá, em meio ao asseio dos viajantes cansados, das mulheres de sarees que lavam roupa e dos pássaros que aproveitam os raios solares da manhã para se esquentarem da manhã fria, a elefona deita-se de lado e, mexendo apenas a tromba para dentro e para fora d’água, é esfregada com duras escovas de lavar roupa. A pele da elefoa, extremamente resistente, mal sente a força que os dois homens empregam para prestar-lhe tal asseio. Vira-se para o outro lado a um comando e, após terminado o banho, volta para o templo, em meio a uma multidão de olhos e máquinas fotográficas e filmadoras. Há lágrimas em alguns olhos já que o espetáculo é lindo, mas triste. Retirada de seu ambiente natural, a elefoa foi treinada para receber dinheiro com a tromba, dar na mão do treinador e encostar a tromba na cabeça do visitante, como se o abençoasse. Os animais por aqui podem não ser consumidos como fazemos no resto do mundo, mas alguns deles são extremamente explorados, principalmente para fins religiosos.
O melhor Talhi de Hampi é no Sesh Besh!


E por último, mas nem de longe menos importante, a comida de Hampi. A comida de Hampi é absolutamente maravilhosa. Praticamente todos os restaurantes oferecem pratos deliciosos das culinárias israelita, tailandesa, chinesa, mexicana e indiana. É a primeira vez em que estamos realmente provando os pratos indianos, já que, por aqui, é possível solicitar a preparação dos pratos menos apimentados. Descobrimos que, em termos de comida, fomos para a pior cidade da Índia. Hyderabad é conhecida por ter os pratos mais apimentados do país. A comida de lá é famosa por isso e não é apimentado com um acarajé “quente”. Imagine que ao invés de uma colherzinha de pimenta, todo o carajé fosse mergulhado no molho picante. Essa é a comida de Hyderabad – deliciosa, mas apimentada demais até para os Indianos. E nem adiante pedir não apimentado. O Hyderabadense encara como ofensa preparar um prato menos apimentado e mesmo que eles tentassem, seria apenas por gentileza – eles não sabem diferenciar um prato apimentado de um não apimentado e mesmo que tentem maneirar, ainda é demais para nosso paladar. Palak panner (pedaços generosos de queijo cottage em um molho absurdamente saboroso de espinafre), Panner butter massala, Aloo mushroom (cogumelos gigantescos preparados em um molho ultra-temperado com batatas) são apenas algumas das delícias que provei por aqui. Para saborear tantos molhos, é possível acompanhar esses pratos com arroz, mas não pode faltar chapati. Chapati é um dos deliciosos pães indianos – frito ou assado no forno à lenha, esse pão fininho, redondo e delicioso é habilidosamente cortado com a mão e usado como colher ou mesmo apenas embebido nos molhos e ele é presença certa em praticamente todos os pratos (certa vez vi uma propaganda de farinha de trigo na televisão em que uma mãe indicava a troca da farinha usada para fazer o chapati como solução para que os filhos gostassem de comer verduras). Sempre pedimos uma ou duas chapatis a mais para não deixar absolutamente nada no prato e estou pensando seriamente em levar tal hábito para minha vida. Em geral, o arroz daqui não é refogado. Ele é feito apenas com sal e alguma especiaria para que o real sabor do molho do prato principal seja experienciado. Além do chapatti, o Nan é outro pão maravilhoso. Maior que o chapatti, ele vem nas opções simples, amantegado, com alho, com queijo ou com nutella (a nutella eu acredito que seja invenção dos estrangeiros que passaram por aqui, há nutella em todos os lugares de Hampi!). Caso queiramos um prato completo, há um equivalente do prato feito brasileiro – o Thali. Em uma bandeja com espaços separados ou em pequenos potinhos, o Thali é geralmente constituído de uma porção de vegetais ao molho de curry, duas chapatti, um papad (uma espécie de chapati frita em olho cuja textura se assemelha a um doritos enorme), uma salada de pepino e tomates, um pickle (um molho fininho com bastante tempero para ser derramado por cima do arroz e  para molhar o chapati e uma porção de coalhada. Pode parecer estranho comer coalhada no almoço, mas é uma forma interessante de abrandar os temperos e também uma sobremesa deliciosa ao incluir um pouco de açúcar à festa. O Thali é sucesso certo em todos os restaurantes por onde passamos, um mais saboroso que o outro. E o mais interessante, é o que a maioria dos indianos almoça. Pedir Thali é experimentar como o indiano de fato come. Dá até para ensaiar comer tudinho com a mão, deixando o garfo e a colher de lado, porque não? E depois do almoço, chai time. O chai está para o indiano como o cafezinho para o brasileiro, mas eles levam a hora do chá bem mais à sério. Na escola em que trabalhamos há até intervalos destinados a uma paradinha para chai and chat. Eu não gosto do chai (massala tea), mas o Val gosta. O café da Índia é, para nós, ruim. Se bem que acho que ele só não é tão bom quanto o Brasileiro. Fico nos chazinhos de menta, canela e jasmim.
(Uma curiosidade: entre as opções refrigerante de garrafa, salta à vista os nomes Mazza e Slice, sucos de manga da Pepsi e da Coca Cola. Nunca tinha visto suco de manga em garrafa ks, mas é uma boa, né?)

Em resumo, se eu pudesse comparar Hampi com alguma das cidades que conheci no Brasil, seria uma mistura de Ouro Preto com Guaramiranga e como essas foram duas cidades que sempre me dão vontade de largar tudo e viver por lá, é melhor voltar logo para Hyderabad!