terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Balanço dos 4 meses na Índia - A culinária, os temperos e a tolerância


Quatro meses na Índia. Como o tempo passa rápido! Talvez tenha chegado a hora de fazer o balanço desse tempo por aqui. O intercâmbio acaba em Abril, mas ainda não sabemos bem o que vamos fazer. Só sabemos que não vamos parar de viajar. Os planos consideram possíveis olhos apertados ou salsa. São apenas planos, mas com o passar do tempo, tornam-se cada vez mais urgentes e cada vez mais urgente é a necessidade de conhecer o que der daqui. São apenas três meses a mais e três meses passam muito rápido.

Após quatro meses, a Índia mostra suas verdadeiras cores. Para quem chegou sem saber quase nada, cheia de receios, mitos, medos e um milhão de expectativas, até que ando aprendendo bastante por aqui. Vou buscar falar sobre cada um desses aspectos, com reflexões sobre esses quatro meses, em vários posts, assim me forço a escrever por aqui e me aprofundo em cada um dos assuntos.

A culinária, os temperos e a tolerância





A comida da Índia não é apimentada – ela é saborosa. É uma culinária de muitos temperos, muitas técnicas. Aparentemente, pode parecer rústico demais cozinhar com as mãos, mas sentir os ingredientes da receita, buscar aromas, tentar reconhecê-los, tentar utilizá-los da maneira certa é absolutamente fantástico. Vou comprando os temperos de pouquinho sempre que provo uma receita nova, utilizando progressivamente cada uma das inúmeras massalas. Quero voltar ao Brasil tendo uma boa noção da culinária indiana. Para isso, viajar para outros estados foi essencial. Ler livros de culinária e ver vídeos no You Tube também.

 As regiões da Índia possuem diferentes hábitos em relação a alimentação. Algumas regiões indianas possuem pratos ou menos apimentados, como o Biryane de Hyderabad, apimentado demais até para os próprios indianos. Comendo a comida da escola todos os dias, nos habituamos aos nomes, aos sabores, ao que é suportável e o que é insuportável. A cada dia, conhecemos um novo item de café-da-manhã que não nos faz sentido e, provando novamente, ele parece ser um pouco mais coerente, como o Idli, uma massa branca parecida com aquelas tapiocas redondas feitas na chapa, mas completamente sem gosto. É necessário aprender que se for quebrado no molho com o qual ele é oferecido, o Idli pode ser delicioso. A refeição inteira é saborosa, desde o dal (molho de lentinhas) que se coloca sobre o arroz, até a refeição principal, passando pela chapatti, sem esquecer da sobremesa.

 Sim, a comida do Brasil também é extremamente saborosa, não me entendam mal, mas como esse é o país das especiarias, uma refeição tem até 10 vezes mais temperos variados em relação à comida Brasileira. Pimenta preta, branca, malagueta, dedo de moça, cominho, orégano, cheiro verde, cebolinha, alho, cebola, óleo de dendê,pimentão, pimenta de cheiro, tomate, óleo de oliva e manjericão são praticamente tudo o que usamos em na nossa culinária mas aqui a oferta de condimentos é tão grande que os temperos são raramente vendidos separadamente e sim em misturas, as massalas. É um festival de sabores – do doce ao salgado, do quente ao gelado.

E claro, o vegetarianismo. Ser vegetariana na Índia é como um sonho bom. É sentir-se normal, é compreender uma cultura que cozinha sem carne há anos e que sabe extrair o melhor de cada vegetal, cereal, fruta ou laticínio. A comida vegetariana aqui é saborosa, encorpada, original. As receitas não são adaptações de receitas onívoras, são vegetarianas em essência. A batata não tenta parecer carne, a berinjela não se fantasia de peixe, espinafres são saborosos e não apenas saudáveis. Vegetais são sucos, são pratos principais, chás e remédios. Eles sabem o poder do que comem e são a resposta definitiva para quem acha que ser vegetariano desde criancinha faz mal. 80% dos meus alunos do colégio são vegetarianos desde de bebês e não pretendem deixar de sê-lo. Não é um tabu para ninguém.


Não posso deixar de ressaltar também o imenso respeito que a culinária e o país inteiro demonstram aos vegetarianos. Ser vegetariano aqui é tão normal quanto ser onívoro. Normal, não melhor e nem pior. Os produtos possuem códigos para informar quando algo é vegetariano ou onívoro e é informado no pacote a presença de ovo na receita, para que os veganos os evitem e não apenas os alimentos, até na pasta de dente!

O símbolo vernelho indica Não-vegetariano e o verde, Vegetariano.


Os restaurantes declaram em seus nomes se são “pure veg” ou se oferecem refeições “veg” e “non-veg”. Tal respeito é motivado pelas religiões – uma boa parte do Hinduísmo e suas vertentes é vegetariana. Os muçulmanos são todos onívoros. Mas, mesmo sendo motivado por motivos religiosos, não deixa de ser respeitoso com as escolhas que cada um faz. Se no Brasil é um sofrimento comer fora de casa e o vegetarianismo é tão cheio de mitos e preconceitos, aqui é apenas escolha de ingredientes.



Aqui se sabe o que se está comendo. Aqui não tem surpresa, presunto na salada, caldo de galinha no arroz e se tem, é informado. Pedi uma panela de pressão emprestada da vizinha para fazer um feijão e ela me pediu para que eu não cozinhasse carne na panela pois ela e sua família são vegetarianos. Até as panelas são diferenciadas. Pode parecer exagero mas não é. Quem é vegetariano não come as verduras ao redor da carne assada, pois a batata foi cozida junto à carne, alguns por nojo, outros por fatores religiosos (não consumir animais em respeito à vida e às reencarnações), mas o fato é que saber que uma panela nunca foi usada para cozinhar qualquer tipo de carne é a garantia de uma comida realmente vegetariana. Vou dar um exemplo claro disso no Brasil. Sabe o sanduíche no pão árabe da pracinha da Gentilândia? Naquela chapa vai hambúrguer, vai ovo, vai presunto, vai queijo, vai pão, vai tudo. Um sanduíche de lá, mesmo sem carne, não é um sanduíche vegetariano pois a chapa em que tudo é frito é a mesma, assim como a espátula usada. Tentar explicar isso no Brasil é pedir para ser alvo de piadas. Aqui é lógico.

O mais interessante é que as pessoas sabem dos efeitos das diferentes dietas. Sabem que não consumir carne auxilia na performance da Yoga e da meditação. Sabem disso e não contestam, mesmo que sejam onívoros. Comem carne (galinha, carneiro e raramente peixe, carne de boi apenas em alguns restaurantes em Mumbai e em Goa, lugares repletos de estrangeiros) e sabem que é uma escolha, não o que é certo e nem o que é errado.

Quem dera eu pudesse levar na mala, junto com as caixas de massala e livros de receitas, um pouco dessa tolerância para o Brasil. Seria, sem dúvida alguma, a melhor de todas as minhas receitas.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Viagens pela Índia: Hampi!


Ah,Hampi...
Vontade de morar contigo, Dona Hampi.



A recomendação de que dois dias ou três seriam suficientes para ver tudo por aqui foi, sem dúvida, a informação mais errada que já tivemos desde que chegamos na Índia. Hampi não pode ser visitada com pressa, nem muito menos com objetivos meramente turísticos (leia-se visitar lugares bonitos e tirar fotos). Hampi deve ser vivenciada. É preciso acordar cedo para aproveitá-la e acordar tarde por tê-la aproveitado demais pela noite. É preciso deixar o relógio em casa e buscar se orientar pelo sol e pela fome. Há coisas demais para ver, muitas ruínas, muitos templos, mais história do que a minha cabeça de Brasileira consegue entender. Encontramos com uma Brasileira que já viajou para diversos lugares históricos e que disse que, comparado à história mundial, o Brasil não tem história. Discordo. Não podemos considerar história apenas quando os Portugueses tomaram para si a terra que era de direito dos Índios e se sabemos tão pouco da história dos nossos nativos, é por culpa nossa e a Índia dá uma lição de como manter e propagar conhecimento por milênios, mesmo com séculos e séculos de exploração por vários povos. Para descobrir tudo, preferimos não contratar um guia. Além de economizar, tomamos a decisão de que descobriríamos Hampi sozinhos. Um guia é tentador, mas queríamos a liberdade de descobrir os lugares ao nosso tempo, já que estamos passando quase duas semanas aqui. Às vezes faz falta. Muitas vezes estivemos em frente a um monumento sem fazer idéia do que ele significa, mas anotamos o nome e pesquisamos tudinho depois. Comprei o guia Lonely Planet da Índia, mas ele vai ser útil de verdade nas viagens para o Norte. Por hora, estamos bem. É meio triste ver crianças trabalhando como guias e resolvemos não colaborar com isso. Aliás, trabalho infantil na Índia é cena constante, ( a grande maioria dos guias são crianças) seja em mercadinhos, seja como guia ou nos imensos arrozais e canaviais, com o sol à pino. Melhor puxar assunto com um local e saber de quem cresceu por aqui as informações passadas de gerações em geração e se tem uma coisa que indiano adora é conversar.
Alugamos uma motoca automática para conseguirmos explorar Hampi por nós mesmos. Rimos tanto de nossa inabilidade que ficamos com as bochechas doendo por dias!



Refletindo bem, talvez a melhor parte em viajar para um lugar como esse são as pessoas com quem encontramos. Pessoas de todas as idades, de todas as nacionalidades, tipos físicos, orçamentos e estilos de vida passam por aqui.. Hoje, escrevendo esse post, tomo chá de menta e ouço uma família de franceses na mesa à esquerda, jovens chineses à direita, um casal à minha frente que fala uma língua que não consigo identificar e a conversa animada na cozinha mistura aromas com Hindi e Kanada.  Pessoas exóticas desde um Africano de rastafari loiro e olho azul piscina que passou o ano juntando dinheiro para viajar de cidade em cidade pela Índia até uma senhorinha de cabelo branco que só em Hampi já veio três vezes,  que resolveu envelhecer só no corpo, que conversa conosco como se tivéssemos feito faculdade juntos, que resolveu que não ia passar o Natal com os três netos e ao invés de peru, comeu panner e bebeu rum até altas horas da madrugada. Encontramos uma quarentona Holandesa que fala Português com sotaque paulista por ter namorado um Brasileiro e que me pede para falar Português com ela com um suave “Fala, minha filha”. Vemos familias de bochechas rosadas dividindo espaço com mochileiros, comprando água, coco e bananas, para si e para os macacos, enquanto uma indiana com prata nas orelhas, no nariz, nos dedos e até nos cabelos tenta nos vender bolsas e braceletes. Enquanto observo a cena narrada, um rapaz tenta convencer um casal rosado a comprar cogumelos alucinógenos enquanto um policial passa indiferente à cena.
Côco docinho, docinho...

Embora seja proibida a venda e o consumo de álcool do lado sagrado de Hampi (embora no Natal cervejas e rum tenham surgido quase que do nada), a oferta de maconha, haxixe e cogumelos é constante. Por dia, pelo menos três pessoas nos oferecem “special magic” em plena praça pública, como quem vende água ou roupas (muitos motoristas de tuk tuk e vendedores de roupas por aqui têm a venda de tais itens como segunda renda). A visão diante do consumo de maconha por aqui é bem diferente. Em muitos templos na Índia, a maconha é utilizada como auxílio na prática do relaxamento e da meditação e ouvi falar que há templos que utilizam até cogumelos. Já o álcool não é bem visto. Até mesmo em Hyderabad é complicado tomar uma cervejinha qualquer. É raro encontrar um restaurante com opções de bebidas alcóolicas no cardápio e se você pedir, é possível que o garçon arranje para você, “special customer”, mas é necessário deixar a garrafa embaixo da mesa e consumir o conteúdo dos copos discretamente. Não há álcool nos supermercados. Há lojas especializadas na venda de bebidas alcoólicas, em geral abarrotadas de homens que pedem, compram e saem desconfiados com suas sacolas pretas. Uma vez em Hyderabad, inventei de comprar uma Kingfisher (a Antártica daqui) e, sem perceber, parei o estabelecimento. Ver uma mulher comprando cerveja deve ter sido chocante – daquele dia em diante, tal função é do Val.
Conviver com macacos é uma experiência engraçada. Não dê bobeira com comida perto deles.


Não posso deixar de falar dos macacos de Hampi. Eu não vi muitos macacos na vida. Não sei se um soin aqui e outro acolá conta alguma coisa. Só sei que em Hampi ( e acredito que em várias outras cidades),é possível cohabitar com macacos, vacas, bodes, corvos, corujas, esquilos, pombos e até elefantes. Eles são tão moradores daqui quanto qualquer outro ser humano. Com a proibição de consumo de carne em boa parte de Hampi por motivos religiosos, a fauna local vive quase sem impacto dos homens. Explico meu quase. Todos os dias, às 8 e meia da manhã, a elefoa Lakshimi sai do templo onde mora acompanhada de dois homens para seu banho. Ela desce as enormes escadas em direção ao rio. Lá, em meio ao asseio dos viajantes cansados, das mulheres de sarees que lavam roupa e dos pássaros que aproveitam os raios solares da manhã para se esquentarem da manhã fria, a elefona deita-se de lado e, mexendo apenas a tromba para dentro e para fora d’água, é esfregada com duras escovas de lavar roupa. A pele da elefoa, extremamente resistente, mal sente a força que os dois homens empregam para prestar-lhe tal asseio. Vira-se para o outro lado a um comando e, após terminado o banho, volta para o templo, em meio a uma multidão de olhos e máquinas fotográficas e filmadoras. Há lágrimas em alguns olhos já que o espetáculo é lindo, mas triste. Retirada de seu ambiente natural, a elefoa foi treinada para receber dinheiro com a tromba, dar na mão do treinador e encostar a tromba na cabeça do visitante, como se o abençoasse. Os animais por aqui podem não ser consumidos como fazemos no resto do mundo, mas alguns deles são extremamente explorados, principalmente para fins religiosos.
O melhor Talhi de Hampi é no Sesh Besh!


E por último, mas nem de longe menos importante, a comida de Hampi. A comida de Hampi é absolutamente maravilhosa. Praticamente todos os restaurantes oferecem pratos deliciosos das culinárias israelita, tailandesa, chinesa, mexicana e indiana. É a primeira vez em que estamos realmente provando os pratos indianos, já que, por aqui, é possível solicitar a preparação dos pratos menos apimentados. Descobrimos que, em termos de comida, fomos para a pior cidade da Índia. Hyderabad é conhecida por ter os pratos mais apimentados do país. A comida de lá é famosa por isso e não é apimentado com um acarajé “quente”. Imagine que ao invés de uma colherzinha de pimenta, todo o carajé fosse mergulhado no molho picante. Essa é a comida de Hyderabad – deliciosa, mas apimentada demais até para os Indianos. E nem adiante pedir não apimentado. O Hyderabadense encara como ofensa preparar um prato menos apimentado e mesmo que eles tentassem, seria apenas por gentileza – eles não sabem diferenciar um prato apimentado de um não apimentado e mesmo que tentem maneirar, ainda é demais para nosso paladar. Palak panner (pedaços generosos de queijo cottage em um molho absurdamente saboroso de espinafre), Panner butter massala, Aloo mushroom (cogumelos gigantescos preparados em um molho ultra-temperado com batatas) são apenas algumas das delícias que provei por aqui. Para saborear tantos molhos, é possível acompanhar esses pratos com arroz, mas não pode faltar chapati. Chapati é um dos deliciosos pães indianos – frito ou assado no forno à lenha, esse pão fininho, redondo e delicioso é habilidosamente cortado com a mão e usado como colher ou mesmo apenas embebido nos molhos e ele é presença certa em praticamente todos os pratos (certa vez vi uma propaganda de farinha de trigo na televisão em que uma mãe indicava a troca da farinha usada para fazer o chapati como solução para que os filhos gostassem de comer verduras). Sempre pedimos uma ou duas chapatis a mais para não deixar absolutamente nada no prato e estou pensando seriamente em levar tal hábito para minha vida. Em geral, o arroz daqui não é refogado. Ele é feito apenas com sal e alguma especiaria para que o real sabor do molho do prato principal seja experienciado. Além do chapatti, o Nan é outro pão maravilhoso. Maior que o chapatti, ele vem nas opções simples, amantegado, com alho, com queijo ou com nutella (a nutella eu acredito que seja invenção dos estrangeiros que passaram por aqui, há nutella em todos os lugares de Hampi!). Caso queiramos um prato completo, há um equivalente do prato feito brasileiro – o Thali. Em uma bandeja com espaços separados ou em pequenos potinhos, o Thali é geralmente constituído de uma porção de vegetais ao molho de curry, duas chapatti, um papad (uma espécie de chapati frita em olho cuja textura se assemelha a um doritos enorme), uma salada de pepino e tomates, um pickle (um molho fininho com bastante tempero para ser derramado por cima do arroz e  para molhar o chapati e uma porção de coalhada. Pode parecer estranho comer coalhada no almoço, mas é uma forma interessante de abrandar os temperos e também uma sobremesa deliciosa ao incluir um pouco de açúcar à festa. O Thali é sucesso certo em todos os restaurantes por onde passamos, um mais saboroso que o outro. E o mais interessante, é o que a maioria dos indianos almoça. Pedir Thali é experimentar como o indiano de fato come. Dá até para ensaiar comer tudinho com a mão, deixando o garfo e a colher de lado, porque não? E depois do almoço, chai time. O chai está para o indiano como o cafezinho para o brasileiro, mas eles levam a hora do chá bem mais à sério. Na escola em que trabalhamos há até intervalos destinados a uma paradinha para chai and chat. Eu não gosto do chai (massala tea), mas o Val gosta. O café da Índia é, para nós, ruim. Se bem que acho que ele só não é tão bom quanto o Brasileiro. Fico nos chazinhos de menta, canela e jasmim.
(Uma curiosidade: entre as opções refrigerante de garrafa, salta à vista os nomes Mazza e Slice, sucos de manga da Pepsi e da Coca Cola. Nunca tinha visto suco de manga em garrafa ks, mas é uma boa, né?)

Em resumo, se eu pudesse comparar Hampi com alguma das cidades que conheci no Brasil, seria uma mistura de Ouro Preto com Guaramiranga e como essas foram duas cidades que sempre me dão vontade de largar tudo e viver por lá, é melhor voltar logo para Hyderabad!