sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sobre Yoga, Harmonia e a paranoia da higiene

Sim, sim. Jamie de saree. Ainda nao eh o meu, eh emprestado. Mas, ja comprei meu primeiro saree, aguardem fotos:)

Passadas as duas primeiras semanas, acredito que esse blog possa comecar a ter um tom mais pessoal, menos descritivo e mais emocional. Quem sabe essa vontade ja seja uma influencia da India em mim. Quero dividir com voces, alem de curiosidades, tambem sensacoes. Comeco a sentir a India, comeco a querer entende-la alem de suas dificuldades e impressoes iniciais. Inicio uma busca por harmonia, um equilibrio que, como me contou meu anfitriao de Diwali, faz com que tantas pessoas larguem tudo o que tem no ocidente e fujam para ca - e as vezes nunca mais voltem.

 Estou fazendo Yoga as Segundas, Quartas e Sextas. Nunca me senti tao bem com meu corpo. Na primeira aula, eu era incapaz de concentrar-me, desenvolver as mais simples posturas indicadas pela professora e morria de inveja do Val, que desenvolve tudo sem uma gotinha de suor. Eh que ele tem o alongamento como rotina devido a ciatica que o ataca vez ou outra. Para mim, e tudo mais complicado, ou pelo menos me parecia ser. Porem, dia apos dia, identifico-me com a Yoga. Comecei treinos em academias de musculacao a vida inteira, mas faltava-me motivacao para fazer os mesmos exercicios repetidamente e o proprio corpo tratava de logo inventar uma desculpa para que eu deixasse os exercicios para depois. Acostumei-me a lidar com a mente e dia apos dia, o corpo ia ficando para depois. Na Yoga, aprendi que um nao existe sem o outro. Corpo e mente sao um so e precisam estar em harmonia. Ouvi isso a vida inteira, mas nunca havia vivenciado nada sequer parecido. Consigo sentir cada musculo do meu corpo sendo alongado e exercitado, consigo ver diferenca na minha imunidade atraves dos exercicios de respiracao. Tenho uma instrutora que consegue ser a pessoa mais carrasca e mais doce do mundo, sempre disposta a motivar e cobrar, dentro do meu limite e sempre me forcando a amplia-lo. Venho reparando que tenho mais ciencia do meu corpo e um simples abaixar para pegar algo que caiu no chao eh para mim diferente, como se eu fosse capaz de sentir um prolongamento do meu corpo, como se meus bracos fossem subitamente mais longos e, incrivelmente, eu fosse capaz de controla-los melhor longos que quando eu os sentia mais curtos. A Yoga faz parte da medicina holistica, que entende que o corpo eh harmonico e doencas e enfermidades nao devem ser tratadas simplesmente com remedios, mas que eh necessario entender que falta de harmonia causa a enfermidade e trata-la por completo. Ando evitando remedios, logo os remedios sem os quais eu nao vivia sem. Talvez para tantos estrangeiros, as primeiras semanas na India sejam mais dolorosas por nao procurarem a yoga. Sei que estaria mais estressada e ficando doente por qualquer besteira, nao fosse essa ajuda milenar. E vamos combinar, vir pra India e perder a chance de aprender Yoga na fonte chega a ser uma ofensa.



Essa ideia de aproveitar o que ha de bom por aqui nao eh bem comum entre os demais estrangeiros. Cada novo intercambista que conheco demonstra uma profunda falta de paciencia e desgosto pela terra que escolheram para visitar. Sao sempre comentarios grosseiros sobre o transito, a sujeira, as regras de conduta, a comida. Todos desesperados para voltarem para casa ou irem para outro pais. Ok, nem todos. Minhas flatmates dividem a visao de que nao as coisas por aqui nao sao ruins e sim, diferentes. A Venezuelana, Yssel, que ja esta por aqui ha 5 meses, entende bem como funciona o pais e esta sempre disposta a aprender um pouco mais. Eh possivel ver no olhar dela que, por mais que sinta falta de casa, ela esta aproveitando e buscando ter sempre uma atitude positiva. A Polonesa, Isabella, possui um espirito mais aventureiro. Ela nao so gosta daqui como ja quer morar em outra regiao, para entender os costumes de uma das muitas Indias dentro da India. A Canadense, Catherine e a Cambojiana, Pamela, estao aqui ha apenas uma semana a mais que eu e o Val e, embora encontrem dificuldade em diversos aspectos, querem conhecer e se encantar. Digo isso bem mais sobre a Catherine, que eh com quem mais estou convivendo. A falta de um ou mais parafusos nas cabecas, minha e dela, acabou nos aproximando. Tanto eu, quanto ela e o Val querem se banhar de algum tipo de espiritualidade, longe de querer pertencer a alguma religiao. Com reservas, todos do apartamento 311&312 do Condominio Nagajuna Dreamland, amam a India. Nao sei se eh por morarmos bem - moramos afastados da cidade e longe de tudo, mas temos conforto. Visitamos algumas acomodacoes dentro da cidade que sao de dar medo. Talvez todos nos precisemos de um cantinho limpo e agradavel e a falta de conforto acabe interferindo nos julgamentos acerca do pais. Ha tambem as motivacoes. Muita gente encara um intercambio para ca como uma atitude exotica e acabam se decepcionando. A espiritualidade, a beleza, a harmonia tao famosas no ocidente quando se fala em oriente existe, mas nao eh dada de graca nas esquinas do centro, junto aos mendigos que te cutucam por qualquer trocado. Eh preciso buscar a beleza e eh preciso estar pronto e disposto a recebe-la. E isso nao eh apenas aqui ou em um pais estrangeiro, so fica mais facil quando se sai da rotina. Fortaleza pode ser um inferno pra muita gente, mas possui o por-do-sol mais lindo que eu ja vi. Entender a feiura, entender o lixo, entender o transito, antes de julgar. Quem sou eu pra julgar uma civilizacao tao antiga? E, alem disso, se eu nao estiver preparada para me desafiar, qual o sentido de ter saido da minha cama na conforto da casa dos meus pais?


A paranoia da India chega a dar medo. Li, com tristeza, uma reportagem do estadao (veja o link aqui) sobre o exagero dos pilotos de Formula 1 que estao participando de um evento historico nesse fim de semana em Delhi. Um dos pilotos esta tomando banho com um esparadrapo na boca para nao engolir a agua "suja" do banho. Outro faz bochechos com uisque apos comer qualquer refeicao. O mais absurdo foi o que anda com desinfetante (desinfetante, nao alcool-gel) no bolso e "higieniza as maos" constantemente. Eu tento entender. Sao atletas, uma dor de barriga qualquer pode tirar-lhes um premio para o qual se preparam ha anos, mas temo como essa informacao eh processada por quem nao esta por aqui. Assim como em qualquer lugar do mundo, voce precisa saber viver. Eu nao como em qualquer butiquim sujo do Brasil, portanto, nao comerei por aqui. Eu lavo minhas maos com frequencia, e continuarei o fazendo, principalmente antes e depois das refeicoes. Sao coisas que eu aprendi com minha mae, nao com a India. O conceito de higiene do Indiano eh diferente, mas eu nao fui educada aqui e sei o que me faz mal e o que eh exagero. E banho com esparadrapo na boca eh exagero. Me doi ver gente por aqui concordando com a reportagem, assim como me eh doloroso ouvir como o Indiano nada sabe do Brasil e como os estrangeiros nos veem como bunda e carnaval. E ainda julgam, como diz Livio Oricchio ao finalizar seu artigo: "Abraços, amigos. O Brasil, com todos as irresponsabilidades, inconsequências, desmandos, ladroagem de cidadãos de seus três poderes, e seus imensos problemas estruturais, com saúde e educação,  notadamente, enquadra-se em outra categoria de nação. Bem acima da ocupada, hoje, pela Índia.".Um dia aqui e ele ja se sente superior. Dah nojo e pena. Uma mente fechada e formadora de opiniao, conjuntinho basico para um desastre etico.

Eh isso, vou tentar escrever em breve sobre o Diwali, um festival lindo daqui que aconteceu na semana passada. Estou reunindo fotos e processando tantas informacoes. E eh tomando meu Chai quentinho, em uma xicara nao-descartavel e sem medo de ser feliz que deixo um abraco a todos.

Ps: Deixo um video em interessante do Grande George Carlin sobre a paranoia dos germes, legendadinho para ninguem reclamar! http://www.youtube.com/watch?v=2_l1xfXY0Nw






domingo, 23 de outubro de 2011

Churidars, spicies e tuk-tuks




Desculpem pelos dias sem novidades indianas. Tivemos um problema com a internet que ainda não foi resolvido. Envio este post de um computador da escola agora que sei como funciona o uso do equipamento de laboratório por aqui. Se me perdoarem, ganham (pra variar) um post enoooooooooorme. Vou tentar escrever posts menores e mais pontuais, mas só tentar. Quando os dedos começam eles não param!

O método de ensino da escola é um tanto um quanto tradicional, coloquemos assim. Não pude ainda me aprofundar  na real filosofia por trás das aulas e, por meu pedido, estou apenas observando as aulas e, vez ou outra, apresentando uma apresentação de Power point sobre o Brasil. O que venho percebendo é que, se por um lado as crianças dessa escola recebem mais do que qualquer outra no Brasil, é na liberdade de expressão que elas perdem. Por mais que todos sejam constantemente estimulados por frases e pôsteres colados por toda a escola, é dentro da sala de aula que os professores não conseguem esconder a vontade de que todos sejam padronizados. Há regras bastante explícitas de conduta e, caso elas sejam quebradas, os castigos podem variar entre humilhação (como permanecer em pé durante toda a aula), receber um tapa ou um bom puxão de orelha ou, em último caso, ser mandado para casa com uma advertência. Minha experiência com escolas (que não de idiomas) é quase nula, mas sei que não é bem assim no Brasil. As carteiras são organizadas de modo que um grupo de alunos seja formado, cada aluno ficando de frente para o outro. Para olhar para o professor é necessário virar-se para o lado.  Se o sistema de ensino favorecesse o trabalho em grupo e a ajuda mútua, essa formação seria ideal. Mas com aulas expositivas, é tentador demais não conversar com quem está do lado ou na sua frente – e eles conversam. Eu nunca vi professores gritarem tão alto, nunca vi tanto medo nos olhos das crianças e, mesmo assim, nunca vi tanta indisciplina. Mais uma vez reforço, não estudei à fundo como as coisas se dão por aqui, não sei a teoria por trás disso tudo, não sei que tipo de educação as crianças recebem em casa. São apenas minhas primeiras impressões.

Há basicamente dois tipos de roupas femininas por aqui: as camisas longas com cortes laterais, usadas com leggings apertadas ou com calças bem frouxas chamadas Churidars (como a foto do post) e os sarees (sempre de sandalia baixa, salto so em ocasioes muito especiais). O saree é um corte de tecido de cerca de dois metros de comprimento que é enrolado de uma forma toda especial ao redor do corpo da mulher. Ele é usado com um top que cobre os ombros e quatro dedos do braço. A maioria das mulheres usam Sarees nas ruas, quando não, as camisas com cortes laterais. Embora seja inapropriado para o ambiente de trabalho mostrar os ombros, os braços e as pernas, nada é dito acerca da barriga. Muitos Sarres chegam a mostrar grandes pedaços da barriga, mas isso não é visto como algo sexy. Diferente, não é? Lembro-me claramente de uma das primeiras lições que aprendi no Brasil sobre o tamanho das blusas que os professores devem usar quando dão aula: se você levantar o braço e sua barriga aparecer, a blusa está curta demais.

Uma das primeiras recomendações de quando cheguei aqui foi cobrir-me. Por um tempo, pensei que era da cultura preservar o corpo da mulher apenas para a intimidade e, por isso, deixei para comprar as roupas que usaria na escola por aqui, após entender como funciona o sistema. A verdade é que o homem indiano é absolutamente tarado. Uma volta pelo centro mostra o porquê de tanto pano em volta das mulheres. Tomei um tuk-tuk para o centro da cidade e, como esse veículo é em geral dividido ( a não ser que você pague o valor de todos os passageiros que o motorista poderia ter pego durante a viagem), um rapaz juntou-se à nossa apertada jornada. Eu estava usando um vestido (vestido no Brasil, aqui, blusa) com uma legging. O vestido cobria os ombros, mas, como estava bem quente, puxei as mangas para baixo, deixando os ombros à mostra. O rapaz não conseguia tirar os olhos dos meus ombros e eu nada entendia. Antes de descer, ele nos perguntou de onde éramos e respondemos “Brazil’. Logo ele suspirou, apontou pros meus ombros e disse com um sorriso imenso: “that’s Brazilian style, right?”. Eu estava completamente coberta e já bastante incomodada por ter que usar uma calça com uma roupa que eu geralmente uso como peça única. Tal comentário foi tão chocante que eu mantive o vestido em “Indian style”. Na rua, os homens agressivamente “secam” as mulheres, especialmente as estrangeiras. E se eu ousar vestir uma blusa com um decote discreto, tenho que agüentar rapazes em motocicletas se erguendo para ver se conseguem ver qualquer resquício de seio. Para o Val está sendo absolutamente irritante. Mesmo que eu me cubra da cabeça aos pés, haverá uma fila infindável de homens pensando coisas bem sujas a meu respeito. Diante desse comportamento, é justificável que o Tuk Tuk tenha um lado reservado para mulheres. Não é apenas uma questão de sexismo, é, muitas vezes, uma questão de segurança.
Outro aspecto interessante são os elogios. Elogios entre mulheres chegam a ser cansativos. Com as unhas horríveis após dias e dias de viagem e adequação, resolvi ir ao salão de beleza do meu condomínio para manicure e pedicure. Tais serviços não só foram bem além do que eu esperava (é dado um verdadeiro tratamento de SPA aos pés e pernas, mãos e braços, com direito a massagem, esfoliação e banho de cremes, um mais cheiroso que o outro).  A manicure em si, o pintar das unhas é frustrante – elas pintam as unhas bem pior do que eu e bem longe do que a manicure mais mal treinada no Brasil faria, até porque a acetona daqui é a pior do mundo. Mas, o que me impressionou foi que, durante todo o tratamento de beleza, a manicure me cobriu de todos os tipos de elogios desde “os seu braços são delicadamente desenhados” , passando por “seus tornozelos são lindamente torneados” até “a cor do seu cabelo combina perfeitamente com você”. Você primeiro fica envergonhada, depois se cansa de agradecer e depois começa a te incomodar. Pode parecer esnobe de minha parte, mas tudo o que eu queria era que ela ficasse calada por cinco minutos ou falasse sobre qualquer outro assunto que não minhas “qualidades”. Vocês podem dizer “Ah, ela estava prestando um serviço”, mas na escola não é diferente. As crianças, as colegas de trabalho...a cultura do elogio é muito forte por aqui. Ser e estar bonita é um elogio enorme para as mulheres, mesmo as nada fúteis. Não há como não pegar a mania para si e soltar um “Good morning, how beautiful you look today!” plenamente involuntário.

Já se vai mais de uma semana aqui e chego a uma conclusão mais ou menos definitiva; a Índia é o lugar do exagero. Tanto as coisas boas como as ruins vêm em porções generosas, sejam as pimentas do prato (certos temperos levam até 50 tipos de pimentas diferentes), seja a sujeira nas ruas, seja o trânsito caótico, a pobreza dos mendigos nas ruas, as cores das decorações, o adorno das roupas das mulheres e crianças e especialmente a gentileza das pessoas. Esse ultimo aspecto e na verdade o mais chocante. Nao importa se voce eh daqui ou estrangeiro, as pessoas estao sempre dispostas a te dar uma informacao, te ajudar em alguma coisa e ate dar caronas. A gentileza entre os condominos do condominio em que moro eh assustadora. Eles sempre estao dispostos a dar uma carona, ajudar na compra de algum item local e estao sempre dispostos a conversar, principalmente se for sobre o pais deles e para saber curiosidades do Ocidente. Essa gentileza muitas vezes pode nao ser vista de inicio. Fechados, raramente ouco gargalhadas pela escola ou pelo predio e quando as ouco, sem que sao as roomates chegando. Estrangeiros sao bem vistos, especialmente pelas castas mais baixas. Como nao sabemos diferencia-los, cumprimentamos a todos como iguais e quem nao gosta de ser tratado bem? Ainda nao entendi muito bem como funciona o sistema de castas, se ele eh assim tao cruel e como se da o tratamento entre uma casta e outra, mas assim que eu tiver informacoes seguras, trago para voces, caros leitores. O que sei eh que, como a pobreza eh grande e ha muitas pessoas na India, ha ocupacoes para coisas que, aos nossos olhos, sao desnecessarias. No meu predio, por exemplo, ha uma moca que limpa a casa, um rapaz de recolhe o lixo e, pasmem, o Iron man, um rapaz que vai uma vez por semana ao nosso apartamento engomar as roupas. Todos esses servicos que, para mim, sao luxos desnecessarios, sao comuns e bem aceitos por todos daqui. A faxineira entra todos os dias as 5 horas e quase invisivelmente limpa a casa. Ela nao faz um sequer barulho. Entra de cabeca baixa e sai de cabeca baixa. Descalca, sequer ouco-a caminhar pela casa. Ela passa invisivel por todos no condominio e foi com surpresa e um sorriso imenso faltando varios dentes que ela respondeu ao meu "Good morning!". A sensacao que eu tive eh que aquele era o primeiro bom dia que ela recebia em decadas. Nao da para nao sentir-se mal diante de uma exclusao social tao grande. Entendam, nao eh que tal exclusao nao exista no Brasil, mas em meu pais nao eh tao gritante. Vejo em muitas `madames' Brasileiras o mesmo comportamento que vejo aqui, mas, felizmente, eh mais incomum.


Dia após dia, vou conhecendo um pouco mais daqui e tanto amando e odiando e amando de novo. Espero por perguntas, dúvidas e sugestões. Um abraço a todos!

Ps: Perdoem a falta de acentos, o post foi escrito metade no meu computador e a outra metade do computador da escola, sem acentos.



quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Preparativos, provações e a chegada


Posso dizer que eu não escolhi ir para a Índia; a Índia me escolheu. A cada hora que passo aqui tenho mais certeza disso. Eu precisava estar aqui exatamente nesse período da minha vida, exatamente com a pessoa que está ao meu lado, exatamente na cidade onde estou e no flat onde moro. A Índia me quis aqui e eu vim. E aqui, narrarei essa verdadeira aventura neste país tão diferente de tudo o que eu conhecia até então.

Não foi fácil chegar aqui e estar confortavelmente deitada nessa cama, digitando o conteúdo desse blog, em um quarto cheirando a incenso e vez tendo como paisagem da varanda árvores as quais eu não saberia nomear. O processo foi complicado. Por vezes, cheguei a pensar que essa viagem não seria possível. Informações confusas, uma passagem de avião com o nome trocado, a gentileza imensa de um amigo chamado Stanford, greves, complicações, dúvidas...tudo passa pelos meus olhos como verdadeiras provações, como se o universo quisesse saber se eu era forte o suficiente, se eu sei em quem confiar, como um atleta que prepara o corpo e a mente para a competição que a de vir. Chego á Índia mais calma, mais tolerante, mais compreensiva, mais positiva. Muitas pessoas fizeram parte dessa preparação e as principais foram sem dúvida o Val, minha mãe a Josi. Essas três pessoas me deram os tapas suficientes para que eu me mantivesse com os pés no chão e os olhos focados no futuro. Não poderia dedicar essa viagem a mais ninguém que não eles.Introdução feita, agradecimentos realizados. Bem-vindos à Índia através dos olhos de uma brasileira que queria ver algo de diferente. E conseguiu.


Para chegar à cidade em que agora moro, fizemos escalas São Paulo, em Johanesburgo, na África do Sul e em Mumbai, na Índia. Quatro vôos, três continentes e três dias sem dormir direito. Antes mesmo que chegarmos à Índia, tivemos nosso primeiro contato com algo que será uma constante em todas as refeições que teremos: a pimenta - o almoço do vôo de Johanesburgo para Mumbai era tipicamente indiano e absolutamente apavorante. Havia arroz, uma salada e uma espécie de refogado de legumes. O arroz tinha um cheiro estranho que, para nós, assemelhava-se bizarramente ao fedor insuportável de um armário tomado por baratas, e tanto a salada de legumes quanto o refogado estavam tão apimentados que não fomos capazes de mais que duas garfadas. Nem com vinho conseguimos rebater aquela quantidade absurda de pimenta e curry. O jantar foi um pouco menos apimentado, mas ainda sim, mais apimentado do que esperávamos. A comissária de bordo ficou com pena da gente e tentou de todas as formas abrandar a situação, mas, sem demais opções a bordo, limitou-se a dizer que se iríamos passar 7 meses na Índia, era melhor irmos nos acostumando.
A chegada ao aeroporto de Mumbai foi chocante. Logo após sairmos do avião, um cheiro de peixe morto à beira de um lago e papel de parede velho nos atingiu de cheio. Através do longo corredor até chegarmos à Imigração, esse cheiro foi sendo substituído por eventuais rajadas de incenso. Olhos curiosos e rostos incomuns nos acompanham . No recebimento das malas, o caos. Fileiras de carrinhos vindo de todas as direções quase nos atropelam; onde deveria haver uma fila há pessoas se enfiando onde dá, sempre com pressa, sempre a um ponto de passarem por cima um dos outros. Conseguimos passagens para Hyderabad mais rápido do que esperávamos e em um avião de segurança duvidosa, chegamos ao Aeroporto Internacional Rajin Gandhi e foi lá que vimos nossa primeira alvorada Indiana. Ver o sol nascer sentados nos bancos de espera do Aeroporto foi lindo, como se a Índia acordasse para a nossa chegada, se arrumando e se vestindo com um Saree alaranjado, como fazem as filhas de sua terra. Ao nosso redor, mulheres de burcas, de Sarees, de mãos pintadas de rena, crianças maquiadas, homens de turbantes e de barbas pintadas de laranja. Entre os olhos da maioria, uma bolinha vermelha, às vezes adornada com um brilhante, às vezes um pouco comprida. Alguns homens usando turbante e todos usando camisas de botão e calças sociais. É quase impossível ver jeans por aqui.
Como o aeroporto é longe do centro da cidade, pegamos um ônibus para um local chamado Begumpet. Lá, fomos recebidos por um guarda da escola em que vamos trabalhar, a DRS. Foi nesse caminho que vimos um dos aspectos mais marcantes da Índia: o trânsito. Qualquer preparação anterior para o que vimos aqui seria falha. O trânsito na Índia é absolutamente caótico, mas dentro desse caos, eles se encontram perfeitamente. O sinal de luz é feito com a mão estedida para fora da janela ou da porta ou do vão, pois os tuk-tuks, uma espécie de moto com lugar banco para dois passageiros geralmente usados como taxis, não possuem portas.  Há carros ocidentais como em qualquer outro lugar do mundo e o contraste entre os carros- os populares e os de luxo - é gritante. Todos estão prestes a bater uns nos outros, há sempre um acidente prestes a acontecer – mas só prestes. Os motoristas, por incrível que pareça, são bem mais humanos que no Brasil. Todos são pessoas dirigindo carros e motos, e não simplesmente carros. Há um contato direto entre os motoristas, seja com olhares, seja com sinais com as mãos. Há quantas filas for possível criar, não há preferenciais e a mão é constantemente confusa (além de utilizarem a mão Inglesa).  A buzina é usada para avisar que se está próximo, ou que se está chegando a um local e não se pretende diminuir a velocidade e não para pedir para passar ou impacientar-se com um motorista que não se move. Todos se movem, todos aproveitam cada frestinha e o mais importante, todos chegam aos seus destinos inteiros e, à primeira vista, não parecem estressados com o trânsito. Para mim e para o Val, é assustador pois estamos acostumados às regras. Aqui a regra é chegar ao destino. E sem um arranhão.

Chegando à escola, fomos recepcionados por um gentil senhor que não cansava de perguntar a razão pela qual não éramos casados. Casar por aqui é mais ou menos como menstruar – vai acontecer como um dos ciclos naturais da vida. A estrutura da escola é excelente e já sabemos que não vamos assumir turmas de início e sim assistir aulas e sentir qual o estilo indiano de ensinar. A partir de amanhã vamos assistir aulas. Já recebi os livros. São parecidos com a maioria dos livros didáticos usados em qualquer escola de Fortaleza. Acredito que o grande choque será na sala de aula. Assim como algumas escolas no Brasil, a rotina da escola começa no café da manhã, depois são dados alguns informes em uma espécie de reunião geral com os alunos de cada nível de ensino (fundamental 1 e 2) e, ao final, todos cantam o hino nacional de pé. Depois, seguem para suas salas. Todas as crianças nos cumprimentam com “Good morning, ma’m” e “Good morning, Sir”. É regra da escola falar apenas Inglês nas dependências, pois, por ser uma escola internacional, há alunos e professores de diversas nacionalidades. Mas isso não quer dizer que somos perfeitamente entendidos. O sotaque indiano é muito forte e, embora eles sigam as regras gramaticais do Inglês britânico, a cadência da fala e pronúncia das palavras, além da velocidade tornam a compreensão difícil e muitas vezes até impossível. No Brasil, veríamos tal sotaque como “errado”. Tento não ver assim. Tento ver como uma tentativa de não perderem suas origens. Praticamente todos falam Inglês aqui e todos são incrivelmente pacientes. Como o Val ainda está aprendendo Inglês, a comunicação para ele está beirando o impossível, mas a paciência e a gentileza dos Indianos é de cair o queixo. Eles sabem que falam complicado, mas falam. Eles sabem que é difícil acostumar-se com o sotaque, mas eles esperam, repetem, falam mais devagar, sem cara feia, sem lançar aquele olhar esnobe de “você deveria saber”.
Nossa acomodação é maravilhosa. Já sabemos que ela é uma exceção. Temos uma suíte com ar-condicionado, uma cama boa, guarda-roupa, banho quente e uma varanda linda que dá para uma floresta que mantem o clima ameno. Moramos com uma Cambojiana chamada Pamela, uma Venezuelana chamada Yisele, uma Polonesa chamada Isabella e uma Candense chamada Catherine. Todas são simpáticas e constantemente misturamos Inglês com Francês com Espanhol e Português. Estamos felizes e a experiência de morar juntos pela primeira vez está sendo ótima.

É nosso segundo dia aqui e ainda estamos nos acostumando ao fuso horário. Sempre que temos chance, fugimos para o quarto e literalmente desmaiamos de sono. Vai demorar um bom tempo para nos acostumarmos e retomarmos o sono tranquilamente. Vai demorar um bom tempo para nos acostumarmos com tudo, na verdade. Mas é exatamente isso que eu desejava: o diferente, o bizarro, o estranho, a fuga da zona de conforto. Estamos constantemente atentos, curiosos, impressionados. E está só começando. De pouquinho em pouquinho, detalharei cada aspecto daqui, tão logo eu comece a entender como as coisas se dão. De inícios, eis uma visão geral: não será difícil amar a Índia, até porque ela já nos ama e nos recebe como um anfitrião ansioso em agradar e, ao mesmo tempo, em mostrar como as coisas funcionam por aqui. E se a viagem inteira for uma refeição, ainda nem chegamos na entrada.